Depois de uma série de fiascos de bilheteira seguidos, a Disney atravessava um mau período, ali por volta dos anos 80. Não era a primeira vez que a casa do Rato Mickey passava por uma crise semelhante e, tal como antes, foi um filme que veio dar um novo fôlego à produtora, inflar-lhe vitalidade e lança-la para mais uma década de sucesso e consolidação da sua influência na cultura popular contemporânea. O filme foi A Pequena Sereia, o famoso conto de Hans Christian Andersen que o próprio Walt Disney sempre quis adaptar, mas que, por um motivo ou outro, foi sempre adiando. Quis o capricho do destino que este fosse o filme que marcasse mais um momento-charneira da Disney, até porque é a última vez que foi feito uma longa-metragem 100 por cento analógica, sem o recurso ao computador.
Tal como fez com o material original dos Irmãos Grimm (olá Branca de Neve e os Sete Anões, olá A Gata Borralheira), a Disney pega no centro original e passa-o pelo filtro cor-de-rosa, retirando qualquer resquício de crueldade ou negritude e amaciando-o. A Pequena Sereia é assim tradicional história de príncipes e princesas em busca do amor eterno, que só pode ser ameaçado por uma bruxa terrível e malvada. No entanto, como todo o mundo sabe, nada é capaz de impedir o amor verdadeiro de se cumprir.
Mesmo que a princesa tenha causa de peixe e pertença a outro mundo, nomeadamente à civilização de homens-peixe do reino de Tritão, que habita no fundo do mar. É um mundo vibrante e altamente musical (Sebatian (voz de Samuel E. Wright), que há de ser o sidekick desta aventura, é precisamente o maestro do reino), mas que, mesmo assim, não faz com que Ariel (voz de Jordi Benson) não tenha uma obsessão pelo mundo dos humanos. É isso que, apesar da censura do pai, vai fazer Ariel aceitar a proposta da tia malvada, Ursula (voz de Pat Carroll): durante três dias terá pernas humanas e, se nesse período conseguir que o príncipe Eric a beije, ficará assim para sempre; caso contrário, entregará a sua alma a Ursula.
Ursula é mesmo uma das grandes conquistas de A Pequena Sereia, já que é um dos vilões mais memoráveis de todos os desenhos-animados da Disney. Influenciada por Divine, a drag queen de John Waters que todos conhecemos de Pink Flamingos, Ursula é uma Cecaelia (criatura mitológica metade mulher, metade polvo) absolutamente assustadora, que transforma os seus inimigos em almas penadas esvaziadas de qualquer alegria (quem é que uma vez os comparou aos turistas enterrados de Inferno no Hotel?). E a sequência final, em Ursula em todo o seu esplendor defronta os heróis, é digna de um Fantasia, o que prova que os realizador, Ron Clements e John Musker, estiveram a ver os clássicos (aliás, quando mais tarde fizeram A Princesa e o Sapo voltou a notar-se o respeito pela época de ouro da Disney).
Mas existem outras conquistas que justificam o sucesso de A Pequena Sereia. E uma das principais será, sem dúvida, a banda-sonora. O filme tem uma colecção de temas que entram directamente para o cânone, que permitiram à Disney inclusive voltar a ganhar Oscares mais de década e meia depois da última estatueta. Tudo isso cria o ramalhete perfeito que é a fórmula vencedora dos grandes clássicos da Disney: príncipes e princesas, amor para toda a vida, mundos mágicos e maravilhosos, sequências divertidas e emocionantes (Sebastian e o cozinheiro francês, Louis, têm provavelmente a melhor de toda) e cantigas a condizer. A Pequena Sereia é um dos McBacons mais redondinhos, brilhantes e vistosos da empresa do Rato Mickey.
Título: The Little Mermaid
Realizador: Ron Clements & John Musker
Ano: 1989