Há três anos estava a fazer zapping desesperado e dei por mim pasmado a ver um canal (acho que o SyFy, mas não aposto) onde passava qualquer coisa que eu não percebia bem o que era. Uma mulher andava desorientada pelas ruas de uma pequena terra e, depois, pelos carreiros de um bosque, fugindo desesperadamente de um gangue de gente mascarada enquanto multidões filmavam tudo com desapego com o seu telemóvel. Não consegui sequer pensar durante dois segundos no que estava a ver até tudo ter acabado. Aiás, até um bom bocado depois de tudo ter acabado, porque a angústia e a ansiedade acumulavam-se de tal forma que eu só queria ver a história daquela mulher resolvida. Eu, que tenho um problema crónico com finais, fiquei a ruminar naquele durante não sei quanto tempo. Foi o meu primeiro contacto com o Black Mirror.
Rezei para que aquilo que eu tinha visto não fosse um filme e, quando descobri que se tratava de uma série, vi todos os outros 5 episódios. Vi-os, revi-os, mostrei-os aos meus alunos, falei dele a toda a gente qual missionário nos Descobrimentos assegurando-os de que iriam para o Inferno se não se ajoelhassem perante aquela maravilha. Vi-os tantas vezes que os hierarquizei do melhor para o pior, com os meus próprios nomes:
- O das bicicletas;
- O da prisão;
- O do porco;
- O do robô;
- O da cena que grava tudo o que vês;
- O do boneco.
Nunca tinha visto nada assim embora, em boa verdade, deva confessar que vi finalmente o brilhante Quinta Dimensão só depois de o ver associado ao Black Mirror. Onde o Quinta Dimensão tem guerra e solidão, o Black Mirror tem tecnologia e solidão. Mesmo quando nos faz sorrir, cuidamos que o sorriso seja de curta duração não vamos nós estar a sorrir quando ele nos der um murro estômago ou um sopapo nas ventas. Acima de tudo, esta série faz uma coisa que é raro vermos nos dias que correm: uma crítica aos usos da tecnologia que não é conservadora.
Passei anos nisto sendo sempre ignorado por todos os que tinham o azar de me passar pela frente. Insistente e invasivo como só um evangelizador sabe ser. Ao mesmo tempo sentia sempre um grãozinho na alma por estar a revelar um segredo de uma série que era só minha, mas cá dentro cultivava a esperança de ser levado em ombros com vivas salvas de morteiros quando o mundo conhecesse a série.
Chegou 2016 e, com ele, a promessa de mais episódios depois do especial de Natal de 2014. Agora vinha o Charlie Brooker (criador da série, vale a pena ver tudo o resto onde ele já meteu o dedo que o homem é um génio) com a força da Netlfix, um símbolo do novo mundo cuja ligação à série não podia deixar de desenhar um sorriso na boca dos fãs, ainda que fosse um sorriso curto, à cautela. A Netflix trouxe o hype desmesurado. De repente, a série que eu tinha acarinhado durante tanto tempo como sendo só minha, estava nos olhos de toda a gente e a mim, amuado, só me restava tornar bem claro a todos os que conhecia de que eu já os tinha avisado e esperar que a nova temporada trouxesse o reconhecimento merecido (da série e meu, claro está).
Veio a terceira temporada. Não creio que nenhum desses novos episódios tenha lugar no meu top 4 de episódios (talvez o do miúdo chantageado tenha lugar em quinto lugar). As histórias estão lá, as leituras tremendistas da realidade também e até os actores. Tenho andado a matar a cabeça a pensar no que faltou à temporada que deu a conhecer o Black Mirror ao mundo e acho que o que faltou foi escuridão e crueza. Sofreu do mal de tantas e tantas bandas por esse mundo fora que, na ânsia de capitalizarem o sucesso do primeiro álbum, tornam o segundo todo polido na esperança de chegar a ainda mais gente. É uma espécie de síndrome de jogador de casino que, fascinado com os ganhos de uma primeira aposta, acha que domina a coisa e acaba por perder tudo. É claro que estou a exagerar e o Black Mirror não é propriamente o jogador de casino que aposta a casa e a mulher e acaba por perder uma e outra. Mas a diferença entre o que é esta terceira temporada e o que poderia ter sido, não deixa de me chatear.
Esperarei pela próxima temporada para saber se o Netflix e o hype mediático dão cabo do Black Mirror da forma mais poética possível: transformando o Black Mirror num episódio do Black Mirror. Até lá, fico-me com a certeza de que vocês todos que só agora chegaram são os culpados por isto. Portanto, obrigadinho por me terem estragado isto.