*por Pedro Soares
Confesso que andava com um pouco de medo e a evitar ver Capitão Fantástico. Tudo porque via no facebook várias pessoas suspeitas a tecerem loas incríveis ao filme de Matt Ross. E onde se escreve pessoas suspeitas deve-se ler pessoas que nunca viram um filme na vida e que agora não se calam com outra coisa, pessoas que praticam reiki e pessoas que participam na ilusão maciça de acreditar que a relação arbitrária entre a posição do sol, as constelações e a data de nascimento afectam a personalidade de uma pessoa (obrigado Sheldon). No fundo, estava com receio que Capitão Fantástico fosse o equivalente cinematográfico da literatura de supermercado (olá Pedro Chagas Freitas, como estás?).
No entanto, por outro lado também me sentia atraído pelo filme. Porque tem o Viggo Moretensen, rei de todos os homens, herdeiro dos tronos de Arnor e Gondor e actor impecável, e porque a sinopse – um homem que educa os seus filhos à sua maneira, isolado do mundo exterior e de qualquer convenção social ou cultural – me fazia lembrar Canino (vénias encarpadas com saída à rectaguarda). Além disso, tinha muito boa gente a melgar-me a cabeça para ver Capitão Fantástico. Ok, não era muita gente, era só o André, que aceitou de bom grado este mano-a-mano de opinarmos sobre o mesmo filme.
Viggo Mortensen é então o pai de meia dúzia de filhos que vivem no meio do mato, num estilo de vida muito alternativo e hippie, onde o racionalismo é a base e o pilar fundador da sua educação. Quando um drama familiar os obriga a irem até à cidade no autocarro de família, Capitão Fantástico torna-se numa espécie de Nell vai à cidade, mas em modo cinema indie (cinema indie como no género que se convencionou catalogar todos aqueles filmes tido como alternativos, mas que obedecem a coordenadas muito bem definidas à partida, e não como em cinema feito independentemente). Aliás, Capitão Fantástico parece-se tanto com Uma Família à Beira de um Ataque de Nervos (perceberam a indirecta?) que até fui ver se os realizadores não eram o mesmo. Até o cartaz do filme é semelhante! Muita banda-sonora folk-pastoral e/ou escandinava, cores vibrantes e filtros do instagram à barda e aquele tom delicodoce, algures entre o feelgood e o melodrama fofinho.
Não há mal nenhum nisto, atenção, não é uma crítica negativa. Até porque vai fazendo sorrir e criamos empatia com aqueles gaiatos tão únicos, que dão dez a zero a todos nós, que estamos completamente alienados do mundo em detrimento da tecnologia e redes sociais (e que, no fundo, é a primeira grande mensagem de Capitão Fantástico). É certo que ideologicamente a discussão poderá ser bem mais alargada (e, por falar nisso, é incrível como Mortensen em modo-Unabomber é tão parecido a Charles Manson), mas não é bem por aí que vamos. O problema de Capitão Fantástico é outro. É o final.
O último acto é um desastre autêntico, daqueles que arruinam um filme. Matt Ross não consegue resolver o conflito entre pai e filhos, que nasce da mudança de contexto socio-cultural da família (e no qual Frank Langella podia vir a ser uma peça determinante, na pele do avô que representa tudo aquilo que Viggo Mortensen pretende combater, mas que acaba por ser só um secundário de luxo), e resolve tudo com um afinal está tudo bem porque sim, utilizando os clichés do cortar o cabelo (e a barba) para mostrar (literal e figurativamente) o quanto as pessoas mudaram naquele bocadinho e confiando tudo no road movie. Sabemos que a viagem é sempre mais importante que o destino, mas não chega colocar o pessoal dentro dum autocarro. E mesmo aquela teoria que defende que [spoiler alter] aquela última parte, com os putos a saírem debaixo do autocarro, é tudo imaginação de Mortensen, me convence.
Mas o pior de tudo é mesmo a cena derradeira de Capitão Fantástico. Passamos o filme todo a ouvir que a canção favorita da mãe dos gaiatos são as Variações Goldberg de Bach, interpretadas por Glenn Gould, e quando chega ao ponto fulcral… dão-nos Guns n’ Roses(!). Eu sei que música clássica não fica tão bem com um pôr-do-sol cheio de filtros, mas era preciso aquilo tudo, com os putos a cantarem à volta da fogueira um tema altamente produzido com direito a solos de harmónica e tudo? Não não, isto não me convenceu mais do que um Double Cheeseburger, lamento.
*por André Cruz
Capitão Fantástico – ou Captain Fantastic, no original em inglês – parece trazer a promessa de nos remeter para um daqueles heróis da DC ou da Marvel, desenhados à medida do cidadão-tipo ocidental, já que acabam por se tornar nos próprios heróis do mesmo. Por vontade do mesmo. Ou assim ele crê. Mas não; o Senhor Fantástico chega de outra forma, quase em jeito de anti-herói do século XXI, tornando-se depois herói, ou não, mediante os juízos de valor do espectador.
Em plena mãe Natureza, num lugar onde a civilização não chegou, Ben (Viggo Mortensen) e a mulher criaram uma pequena sociedade, com inspirações na utopia filosófica que Platão transmite na sua República, e lá habitam com os filhos. A mãe, porém, e depois de uma falência mental, abandona o local em busca de auxilio hospital, para não mais regressar. Lá, na pequena sociedade, sobressai uma organização des(regrada) de um pai que procura preparar os filhos para a viagem que dá pelo nome de “vida”; treinos físicos (corridas, luta, ou escalada), treinos intelectuais (leitura, música) ou treinos de sobrevivência (caça) numa vida sem relógios. Sem pressão.
É na relação entre pai e filhos e nos preciosos detalhes conseguidos ao longo do filme, que Capitão Fantástico exibe a sua riqueza: o questionamento, pertinente e, de diversas formas, provocante, de qual será a forma de educar, de ser e de estar correct, numa sociedade pré-feita e pré-pensada por meia dúzia de corporações e onde os valores humanos e até animais parecem desvanecer-se aos poucos. O filme é uma lufada de ar fresco na forma de encarar todos estes aspectos, fazendo pensar na eficácia da auto-educação e na importância de utilizar a verdade como meio para todos os fins e que, em suma, origina seres singulares, com consciência crítica e capacidades extraordinárias. Capacidades que todos os seres humanos possuem e que talvez não se demonstrem pela ausência destes mesmos valores.
O filme não olvida também o lado social (que não existia na sociedade criada, onde apenas viviam os sete) e a crise gerada entre pai e filhos pela falta da mesma. Termina, de forma lúcida, com um regresso à sociedade, ponderada e desejada, num lugar onde os valores adquiridos no meio natural podem coexistir com os da sociedade já “desenvolvida”.
PS do André – Dentro dos parâmetros limitadores que nos oferece este requintado blog de cinema, declaro que a minha avaliação recai para um Big Mac, mas que o mesmo é inteiramente vegan, elaborado sem qualquer vítima mortal ou vítima de tortura.
PS do Pedro – O André queria dar ao filme uma salada. Eu continuo sem perceber porque é que ele queria dar-lhe a comida que a nossa comida come.
Título: Captain Fantastic
Realizador: Matt Ross
Ano: 2016