Nos últimos filmes, João Canijo tem mergulhado cada vez mais, com os seus actores, num método imersivo e intensivo que os coloca a viver nos contextos socio-culturais das histórias que vai filmar como se estivessem em estágio pré-rodagem. Podemos pensar nos seis meses que Anabela Moreira passou a viver no campo, para Mal Nascida, tendo inclusive engordado e transformado-se fisicamente, ou a temporada que as actrizes de Sangue do Meu Sangue passaram num bairro social da Pontinha e, mesmo assim, nenhuma dessas experiências é tão radical quanto a de Fátima.
Fátima é o filme de uma longa peregrinação a pé desde Vinhais, aldeia em Trás-os-Montes, até ao santuário mariano de Fátima. 11 mulheres palmilham aquele que é o percurso mais longo de todos (cerca de 400 quilómetros), tanto no filme como na vida real – Rita Blanco, Anabela Moreira ou Cleia Almeida já são habitués nos filmes de Canijo, mas há ainda Ana Bustorff, Teresa Madruga, Teresa Tavares ou Sara Norte, por exemplo, para não falar das actrizes não profissionais. Este método dá uma nova definição ao docudrama, com a realidade a ser contaminada pela ficção (e vice-versa), já que pelo caminho encontramos (e conhecemos) outros peregrinos.
É um filme que surge naturalmente no seguimento do corpo de obra de João Canijo, tanto formal como tematicamente. Fátima é um filme feminino, sobre um grupo de mulheres que, inclusive, vacila quando um pauzinho é enfiado na engrenagem – um homem que, às tantas, se junta ao grupo. É também um filme sobre a família, aqui não a noção tradicional do termo, mas sobre a ideia de núcleo familiar, ou melhor, de núcleo grupal. As mulheres do elenco são uma personagem colectiva – apesar de Rita Blanco e Anabela Moreira se destacarem, até mais pelas suas personalidades do que pelo (pseudo)argumento do filme -, que reage de acordo com as dinâmicas e tensões do grupo. A grande diferença deste para os anteriores filmes de Canijo é que aqui não existe a habitual tragédia grega (ou crime passinoal, se nos lembrarmos de Sapatos Pretos). Aqui não há uma narrativa, Fátima limita-se a acontecer e, nesse campo, lembra-nos mais a experiência formal radical de Lars Von Trier, Gerry, que era um filme altamente (e exclusivamente) reactivo.
E a parte da religião? Curiosamente é o que menos interessa no filme, apesar de este se chamar Fátima e de ser sobre um grupo de mulheres em peregrinação até ao santuário da Cova da Iria. O que fica é o sentimento de sacrifício e redenção, aquela ideia muito judaico-cristã de culpa, pecado e expiação que rege o catolicismo e que faz desta demanda espiritual um martírio em vez de uma catarse espiritual. Podemos, por exemplo, comparar Fátima a O Caminho. Enquanto que vemos o filme de Emilio Estevez e ficamos compelidos a ir fazer também o caminho de Santiago, no filme de Canijo aquilo tudo nos parece um filme de terror no qual não queremos tocar nem com uma vara de 15 metros. E isso começa logo pela natureza do percurso; enquanto que, para Santiago de Compostela, Martin Sheen seguia pelo meio da natureza em paisagens idílica, para Fátima, Rita Blanco e companhia seguem por estradas nacionais estreitas, bombas de gasolina e outros não-lugares incaracterísticos e inestéticos.
Fátima é uma experiência formal, mas cuja ausência de narrativa não hipoteca a dimensão cinematográfica do filme. Por isso, é uma experiência que resulta, com várias camadas de interpretação, assente nos ombros das suas actrizes e que, pelo menos a mim, deixa uma certeza: não quero mesmo nada experimentar ir a Fátima a pé. Prefiro ficar no escurinho da sala de cinema a comer um Le Big Mac.Título: Fátima
Realizador: João Canijo
Ano: 2017