As convulsões sociais costumam ter uma forte influência na criação artística local. A chegada da troika a Portugal, com a consequente adopção de apertadas políticas de austeridade, abalou os pilares da sociedade portuguesa e, como tal, era expectável que isso se viesse a reflectir na música, no cinema ou na literatura. No entanto, ninguém esperava que isso acontecesse de forma tão rápida e com tanta força na produção cinematográfica lusa. Têm sido vários os filmes sobre a crise que estrearam nos últimos tempos e todos eles com grande impacto – alguém mencionou a trilogia As Mil e Uma Noites ou São Jorge?
E agora surge A Fábrica de Nada, que poderá ser o filme decisivo desta espécie de cinema da troika. Um filme que parte de uma situação de falência (financeira, mas também de valores morais/familiares), para construir uma narrativa, que mescla ficção e documentário como se fosse ambos sem ser, simultaneamente, nenhum dos dois. E, como se isso não chegasse, diverte-se ainda a desmontar o próprio dispositivo fílmico, como no momento em que, já mais perto do final, A Fábrica de Nada abre-se ao musical, com os seus intervenientes a embarcarem numa coreografia cantada que nada deve ao surrealismo fantasista de Miguel Gomes.
Estamos então numa fábrica da zona da zona da Povoa de Santa Iria, subúrbio industrial lisboeta, que entra em bancarrota. A direcção desaparece, o trabalho acaba e os trabalhadores ocupam as instalações, mantendo o seu horário laboral, para impedirem a venda das máquinas e para não darem razões ao patrão para despedimento por justa causa, transformando-a, literalmente, numa fábrica de nada. E, entretanto, optam por avançar para uma solução de auto-gestão.
O filme tem uma agenda política, mas não tira propriamente partidos, porque apesar de se encostar à esquerda, deixa também críticas ao esvaziamento do discurso ideológico. Os diálogos entre os trabalhadores (a maioria deles amadores, recrutados da própria zona de Santa Iria e com experiências operárias semelhantes aquela), que são as melhores cenas do filme, discorrem sobre as vantagens e desvantagens destas opções, lembrando inevitavelmente as cenas do documentário Torre Bela, especialmente o famoso diálogo da enxada. E num dos momentos em que a ficção se sobrepõe ao documentário, A Fábrica de Nada demora-se numa discussão à mesa (as refeições são sempre local privilegiado para o diálogo no cinema), com filósofos, ensaístas ou médicos (Anselm Jappe ou Isabel do Carmo, por exemplo).
Mas A Fábrica de Nada também se atira à desumanização do capitalismo, lembrando A Lei do Mercado. Contudo, enquanto esse era um filme sobre um homem, este é sobre um colectivo. Se bem que, nessa parte, acaba por ser apenas sobre o José Smith, sobre como essa crise profissional influencia decisivamente a sua relação amorosa ou as noitadas com a sua banda punk. É, no entanto, nessas longas divagações para fora da fábrica que o filme perde força, até porque é aí (paradoxalmente, diga-se) que parece querer reforçar uma qualquer agenda ideológica.
A Póvoa de Santa Iria é também uma importante personagem no filme e a sua paisagem industrial é omnipresente. Lembramo-nos de Roger e Eu, onde isso também acontecia com a Flint natal de Michael Moore, se bem que esse era um documentário-denúncia e este é mais agit-prop. E até há uma cena em que também se esfola um coelho, fazendo uma inesperada rima muda com Roger e Eu.
A Fábrica de Nada desenrola-se por três horas e, por vezes, dá a sensação de que isso é demasiado. Mas não se torna aborrecido ou maçudo. Porque é cinema de intervenção, cinema verité, documentário, ficção, neo-realismo industrial, musical e melodrama, tudo misturado numa estranha harmonia, que lhe dá um tom de filme-acontecimento. E um filme-acontecimento menos que um McRoyal Deluxe não seria nunca um filme-acontecimento.Título: A Fábrica de Nada
Realizador: Pedro Pinho
Ano: 2017
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