Eusébio da Silva Ferreira, maior jogador português de todo o sempre (vamos abster-nos de comparações com Cristiano Ronaldo) e ícone maior do nosso país dentro e fora de portas, não é uma figura estranha do grande ecrã. Ao longo do tempo, foram várias as vezes que chegou ao cinema, a maioria das vezes pela mão do documentário, mas também pelas mãos da ficção (e até pelas duas ao mesmo tempo). A última das vezes até nem foi há muito tempo. Eusébio – História de uma Lenda estreou nas nossas salas no ano passado, em 2017.
E, no entanto, nunca antes houve um filme sobre Eusébio como este. Mesmo que Ruth não seja propriamente um filme biográfico sobre o Pantera Negra. Na teoria, é um biopic sobre um período muito específico da sua vida – o início da sua carreira de futebolista em Moçambique e a luta que despoletou entre Sporting e Benfica pela sua contratação; mas na prática é um retrato do Portugal dos anos 60, do regime de Salazar, das tensões socio-políticas da altura e da vida nas colónias do Ultramar.
É certo que Ruth funciona numa lógica episodical, montado a partir de vinhetas rápidas que respondem a um programa de intenções e não propriamente a um argumento. Mas graças a uma recriação de época exemplares e valores de produção assinaláveis – com destaque para as cenas em Maputo, nomeadamente entre o Scala e o Continental, pontos centrais da vida moçambicana de então -, Ruth vai pintando um retrato bastante interessante do Portugal dos anos 50 e 60, com o caso do desvio do paquete Santa Maria a dar na rádio ou o Ultimato da ONU por causa das colónias a dar na televisão. E ainda dá uma bicada muito pertinente a esse passado colonizador e tolerante, quando fala de um Portugal sem racismo num plano num café onde os negros são apenas os serviçais da elite branca.
A tudo isto ajuda um elenco de notáveis (Vítor Norte, Fernando Luís, Miguel Borges, et tal), bem complementando pelo semi-desconhecido Igor Regalla (na pele do próprio Eusébio) e pelos músicos JP Simões e Paulo Furtado, este último que assina também a banda-sonora (e que bela banda-sonora) sob o seu alter-ego Legendary Tigerman. E, no final, Ruth termina sem mostrar uma única cena de futebol, demonstrando a inteligência, bom gosto e savoir faire do estreante António Pinhão Botelho, filho do outro Botelho. Ruth prova que é possível fazer cinema em Portugal a partir da cultura popular e do imaginário colectivo comum sem cair na irrelevância e na telenovela (salvo a redundância). Por isso, o seu Double Cheeseburger sabe a pato (ou a mandioca, para ser mais preciso).
Título: Ruth
Realizador: António Pinhão Botelho
Ano: 2018