O anacronismo é uma ferramenta com possibilidades imensas na narrativa de um filme. Em Em Trânsito, aquilo que podia apenas ser a forma de se fazer um filme de época sem dinheiro para tal, ganha uma inesperada reverberação perturbadora, pelos ecos que faz com o passado e com o presente ao mesmo tempo.
Estamos então em França e, pelos carros ou pelas roupas, percebemos que são os dias de hoje. No entanto, há uma ocupação alemã prestes a acontecer e, apesar de nunca serem nomeados (fala-se uma vez de uns “fascistas”), há um óbvio eco do nazismo. Contudo, o fluxo de refugiados em fuga ecoa também com o presente. E Marselha, enquanto cidade portuária, até tem uma palavra a dizer neste capítulo.
Em Trânsito segue a estrutura do film noir, com um narrador omnipresente e uma femme fatale que vai aparecendo e desaparecendo, mas é demasiado luminoso para o podermos apelidar de neo-noir. Fica-lhe melhor o rótulo de thriller político. Ou de pesadelo kafkiano, já que Georg (Franz Rogowski), o protagonista, vai acabar por ficar emaranhado numa teia de burocracias intermináveis na busca pela documentação que o levam dali para fora.
Simultaneamente, há ainda a questão da duplicidade, uma vez que Georg vai apropriar-se da identidade de um escritor que entretante se suicida, para aproveitar o seu estatuto de exilado. Lembramo-nos inevitavelmente de Profissão: Repórter e o alheamento de Antonioni também é uma marca autoral que fica bem a Em Trânsito.
Mas há ainda ais uma camada de leitura no filme – a história de amor proibido de Georg e Paula Beer, a tal femme fatale desta história. O próprio realizador Christian Petzold confessou que Em Trânsito fecha uma trilogia sobre histórias de amor em tempos de conturbados, elegendo esta como a principal temática do filme. Infelizmente, esta também é a menos interessante, que está sempre mais perto da novela ou da presunção do cinema de autor mais artsy fartsy do que dos romantismos em tempos de guerra.
Portanto, Em Trânsito é um caldeirão onde Petzold despejou uma imensidão de temas, ideias, referências e até signos do cinema de género. Acerta quase sempre ao lado, mas não para de dar tiros. E tendo em conta o processo, isso é (muito) mais do que a maioria das estrelas semanais tem para dizer. Por isso, o McChicken também recompensa essa faceta (mais uma!) ambiciosa.
Título: Transit
Realizador: Christian Petzold
Ano: 2018