Olhando para o esgoto a céu aberto que, quer redes sociais, quer comunicação social conseguem ser tantas vezes, a Síria é um sítio lá longe onde ninguém se entende e de onde vêm hordas bárbaras acabar com o nosso estilo de vida. Ou então é um sítio de onde vêm magotes de gente desesperada que, pelo seu número, não passa disso mesmo. Mesmo quem sabe, racionalmente, que há por ali um drama e se emociona com imagens de crianças mortas à beira-mar, dificilmente reconhece nessas pessoas a sua humanidade. Nem é por mal, simplesmente não conseguimos processar a informação dessa forma, sob pena de entrarmos numa depressão profunda de onde nunca mais conseguimos sair.
Depois aparece-nos um documentário como Para Sama pela frente e ficamos sem saber muito bem o que fazer. Para Sama é violento. Não pelas gráficas e ensanguentadas imagens (que tem em barda), não pela claustrofobia de se passar em grande parte dentro de um hospital que vai colapsando ao ritmo das bombas, mas por retratar pessoas nos seus aspectos mais básicos e, por isso, mais geradores de empatia, que são incessantemente deitadas ao chão. A violência aqui não vem da forma como estas pessoas são agredidas na sua humanidade, mas na incrível desproporcionalidade entre quem tem a ousadia de querer viver livre e a miríade de facções que vão lutando em cima dos cadáveres dos primeiros.
Vamos por partes. Para Sama não é, cinematograficamente falando, um grande objecto artístico. Nem podia ser. Quando Waal al-Kateab decide começar a registar em filme o surgimento de um movimento de libertação contra o regime, certamente não fazia ideia de como a história ia acabar nem de como vai ela própria iria ser capaz de a retratar do epicentro dos violentos abalos. Vemo-la a apaixonar-se por Hamza, a engravidar de Sama. Vemos a crescer dentro de si um sentimento de pertença a Aleppo como sítio onde podem nascer coisas: bebés, famílias, arte, amizades, liberdade, amor. E, depois, vemos enquanto exércitos espezinham essa fecundidade lutando entre si por sítios que vão desaparecendo como consequência dessa luta.
Waal, Hamza e Sama ficam para trás. Resistem e dedicam-se à sua comunidade de forma que não sei bem se será particularmente lúcida ou particularmente alucinada. Fazem-no porque enquanto os outros destroem e espezinham Aleppo, eles agarram-se àquela cidade como se a sua identidade dependesse da sua existência. E, enquanto isso, vêem-na a ruir.
Para Sama é um retrato íntimo de gente que não é números. Gente que não encaixa nos ideais depravados de idiotas que olham para aquela gente e se sentem ameaçados. É um retrato tão íntimo, tão pouco profissional, tão autêntico (como só poderia ser o relato de quem não sabe se sobreviverá até ao dia seguinte) que nos deixa aflitos, incomodados, culpados e com uma admiração intensa. Para Sama é o documentário que, fossem os Óscares um evento de reconhecimento do cinema, teria ganho. É que não se pode pedir muito mais de um documentário que, ao mesmo tempo, nos deixa de coração partido, desesperados e com redobrada fé da humanidade.
*por Diogo Augusto
Título: For Sama
Realizador: Waad Al-Kateab & Edward Watts
Ano: 2019