O SACRIFÍCIO
Até estrear Midsommar – O Ritual, O Sacrifício era o líder incontestado de filmes de terror sobre paganismo (e sim, estou a considerar em A Feitiçaria Através dos Tempos). Apesar de ser considerado por muito boa gente como o Citizen Kane dos filmes de terror, O Sacrifício é também uma obra atribulada, com várias edições disponíveis a circularem por aí e o relato de outras tantas cenas que nunca ninguém viu. Mas é exactamente deste tipo de coisas de que são feitos os filmes de culto.
O Sacrifício está para o British horror assim como os Monty Python estão para o British humor. Aliás, tal como este, o terror britânico é muito particular: com um estilo cru algo formal, chega quase a ser absurdo, o que só serve para acentuar ainda mais o nível de perturbação e distorção da realidade. É isso que faz o elemento musical que o realizador Robin Hardy insere no filme. Ao transformar O Sacrifício numa espécie de Serenata à Chuva bizarro, Hardy torna irreconhecível os sinais desse género criando algo novo, que parece familiar mas que causa estranheza ao mesmo tempo.
O Sargento Howie (Edward Woodward) é o agente destacado para ir investigar uma denúncia anónima que recebeu. Aparentemente, uma menina desapareceu há já algumas semanas numa ilha nas terras altas escocesas. O Sargento Howie, um devoto cristão temente a Deus (que, na cena inicial do filme, está a celebrar a missa enquanto entoa um hino), vai ser um elemento estranho numa comunidade ainda mais estranhada. É que os locais não só insistem em negar que está alguém desaparecido, como recusam também a fé cristã, tendo abraçado os costumes pagãos de antigamente, que incluem deboche e muita devassa (quase toda ela incarnada no corpo escultural da hiper-sensual Britt Ekland).
Com um ritmo lento, Robin Hardy vai desenrolando a investigação do sargento Howie passo a passo, à medida que vai inserindo subtilmente elementos cada vez mais bizarros: uma orgia, uma senhora a amamentar um bebé no cemitério… E depois as canções, uma jukebox de folk pastoral de temática pagã, que inclui crianças a cantar sobre falos, por exemplo. É uma espécie de retorno ao campo e ao seu mundo bucólico idealizado – o campo enquanto oposição à cidade -, mas em versão dimensão alternativa.
No entanto, O Sacrifício é sobretudo uma reflexão sobre a religião e a crença, opondo o Cristianismo ao paganismo e levantando a questão: não são todas as religiões um conjunto de signos criados pelo Homem, que têm por isso a mesma validade? Cristopher Lee, no papel do líder da comunidade (ele que dizia que este era o seu trabalho favorito), representa esta dicotomia, opondo-se como o principal vilão da história. Por isso, é ele que irá encaminhar e liderar o acto final, em que inclui o Sargento Howie e um boneco de pau gigante a arder (e tendo em conta que o filme se chama O Sacrifício já estão a ver onde é que isto vai parar, não é?).
Mas também é verdade que fica sempre no ar uma sensação de que há sempre algo em falta em O Sacrifício. É um sentimento de incompletude, a que não ajuda o facto de haverem tantas edições finais diferentes a circular por aí. Mas é precisamente essas imperfeições que tornam O Sacrifício ainda mais inquietante. Pode não ser o Citizen Kane dos filmes de terror, mas é sem dúvida um McRoyal Deluxe dos filmes de terror.
Título: The Wicker Man
Realizador: Robin Hardy
Ano: 1973
O ESCOLHIDO
Nicolas Cage disse que, quando viu O Sacrifício (aconselhado por Johnny Ramone, a quem o remake é dedicado), ficou perturbado durante duas semanas. Por isso, decidiu investir o seu tempo e dinheiro em O Escolhido, versão contemporânea do clássico de Robin Hardy. Claro que, rapidamente, a coisa resvalou para o camp e para a irrisão involuntária, tornando-se um filme de culto pelas razões erradas. O Escolhido é feito do mesmo material que clássicos como Plano 9 do Vampiro Zombie, filmes tão maus que se tornam bons. Cage ainda tentou salvar a situação, dizendo que tinha sido de propósito (lol?), mas já não havia nada a fazer.
Apesar de se basear quase na totalidade em O Sacrifício (do qual aproveita as falas quase todas, se bem que em contextos diferentes), O Escolhido acrescenta-lhe um prólogo e um epílogo. Este último parece ter sido filmado num fim-de-semana, num bar de um amigo do realizador (e onde estava o James Franco de passagem), por isso vamos fazer de conta que não existe. Quanto ao prólogo, serve para dar uma maior espessura existencial ao protagonista: Nicolas Cage é um polícia atormentado por um acidente de viação a que assistiu, com alguns laivos de sobrenatural, e do qual não conseguiu salvar uma miudinha.
Depois entramos na história que já conhecemos. Cage recebe uma letra de uma antiga namorada (Kate Beahan), que vive numa comunidade isolada numa ilha algures, e lhe pede ajuda para encontrar a filha desaparecida. Cage lá vai, suborna um piloto de um avião de mantimentos para o levar à ilha que é propriedade privada e, por isso, ninguém lá pode ir, mas quando lá chega fica alojado num… hotel(!). Tal como em O Sacrifício, também aqui toda a gente começa por negar o desaparecimento. Mas em O Escolhido sabe-se quem é a mãe da vítima. E esta não parece muito abalada. Tudo muito suspeito, menos para Nicolas Cage.
Ou seja, tudo o que o realizador Neil LaBute insere de novo a O Escolhido é mau ou desnecessário. Como a cena em Nicolas Cage segue um vulto à noite até um celeiro e acaba por tropeçar e quase cair lá de cima. Típica cena de encher chouriços, porque depois ele vai dormir. Ah, é verdade, Cage é também alérgico a abelhas e, obviamente, que vai haver uma sequências em que ele se perde no meio de várias colmeias e outra de tortura com abelhas(!), que se transforma numa daquelas cenas míticas da internet, com todo o exagero típico de Cage.
Aliás, O Escolhido é um dos filmes perfeitos para ver os rampages habituais de Nicolas Cage. E para o ver a socar mulheres(!) atrás de mulheres(!!), a importunar crianças(!!!) e a correr de um lado para o outro vestido de… urso(!!!!). Ou a roubar-lhes a bicicleta, para depois parecer a Mary Poppins. Nicolas Cage é o pior polícia de sempre! A única coisa que O Escolhido altera de O Sacrifício e que podia ter sido para melhor é que, aqui, a comunidade pagã é matriarcal. No entanto, a única variação que vemos é a costela machista e misógina de LaBute ao vir ao de cima. O Escolhido é uma Hamburga de Choco que é, simultaneamente, um dos piores filmes e um dos piores remakes de sempre.
Título: The Wicker Man
Realizador: Neil LaBute
Ano: 2006