Em Alta Fidelidade, a dada altura, Laura confronta Rob com aquilo que entende ser a sua infantilidade e o seu egocentrismo: Tu achas que a vida é um filme em que tu és a personagem principal e todas as outras pessoas são personagens secundárias!. Rob responde: Não é o que faz toda a gente?. Rob, claro, tinha razão. Juntando-lhe uns pozinhos de suave e inofensivo delírio persecutório, todos temos pensamentos que nos visitam a cabeça com mais ou menos frequência, com maior ou menor persistência: E se isto tudo fosse para mim? E se me estão a observar? A testar?. Não é à toa que a religião ainda é um fenómenos tão popular.
Truman Show – A Vida em Directo é, nesse sentido, uma espécie de concretização de uma fantasia: a de que o facto de a “minha” (a de cada um, na verdade) vida ser tão medrosa ser apenas produto de uma maquinação maquiavélica de uma entidade omnipotente. E, se assim é, que responsabilidade posso ter eu nisto tudo?
Peter Weir permite-nos acompanhar a vida de um vendedor de seguros que, desde que nasceu, é a estrela de um reality show sem que o saiba. Tudo à sua volta é encenado para gáudio de uma plateia televisiva sedenta de “realidade”. Se isto poderia ser um episódio do Black Mirror? Podia. Mas nunca das primeiras duas temporadas onde nunca haveria espaço para tanto optimismo.
Truman Show – A Vida em Directo funciona porque retrata uma versão caricatural da vida que, se pensarmos bem, não é assim tão caricatural. É isso que torna a história assustadora e que lhe dá nervo. Por isso, quando Truman decide, contra tudo e contra todos, ir contra aquilo que lhe garantiam ser saudável, contra aquilo que lhe garantiam ser realista, pôr em causa a sua realidade, é aí que entramos decididamente no domínio da ficção mais especulativa. Permite-nos, é verdade, viver essa ruptura, ainda que por interposta pessoa, e, assim, esquecermo-nos da nossa realidade que está ali retratada.
Mas é irónico que o faça porque ter pessoas que vivem a vida de outro para esquecerem a sua é a premissa do programa de televisão retratado no filme, mas também do próprio filme. Este escapismo do rame-rame do quotidiano, de uma vida materialmente confortável mas sem sentido, de um emprego estável mas emocionalmente desgastante não é propriamente exclusivo deste filme. Lembro-me assim de repente de Revolutionary Road que revi há pouco tempo ou de Pleasantville – A Viagem ao Passado, mas com certeza que não faltarão exemplos. Estão aqui reflectidas as angústias de várias gerações.
É claro, hoje sabemos que escapar à prisão da estabilidade nos atira para uma selva onde nada é permanente e nada é garantido. Como diria Marx, tudo o que é sólido, dissolve-se no ar: vínculos laborais, casa, relações amorosas… Hoje a angústia das novas gerações estará mais na violência da instabilidade do que na monotonia da estabilidade. Ainda assim, Truman Show – A Vida em Directo consegue fazer este retrato com mestria, sugando-nos lá para dentro e deixando-nos rogar pragas à figura omnipotente (chamada, de forma bem óbvia, Christof) enquanto símbolo de tudo e todos os que nós prendem. Não fará bem a alguém com delírios persecutórios ver este filme, é verdade, mas aqui fica a viva recomendação. Que isto é daqueles Royale with Cheese que se come até sem fome.
*texto por Diogo Augusto
Título: The Truman Show
Realizador: Peter Weir
Ano: 1998