Todos os anos, no verão, é a mesma coisa. As temperaturas aquecem cada vez mais e o tempo seco, em combinação com o vento, cria as condições perfeitas para os incêndios deflagrarem nas florestas portuguesas. Depois a comunicação social monta um circo mediático à volta, os bombeiros e a protecção civil exigem mais meios e recursos e o Governo promete reformas e investimento. Depois vem o inverno e toda a gente se esquece dos incêndios outra vez, até ao verão seguinte, quando tudo se volta a repetir.
Esse é um fenómeno que não é apenas português. Na Galiza espanhola, aqui bem perto, acontece a mesma coisa. A diferença é que, em Espanha, agora têm um filme sobre o assunto. Chama-se O Que Arde e é o título mais sonante do que já se designa como a nova vaga do cinema galego. No entanto, dizer que o filme de Oliver Laxe é sobre os incêndios é um pouco abusivo.
É que, de facto, eles estão lá. E antes do fim do filme, há de irromper um incêndio brutal, que é filmado de perto, como um verdadeiro filme de terror. São sequências angustiantes, com as labaredas a crepitar bem perto, tão perto que chegamos a temer pela integridade do celulóide. Era capaz de jurar que a até a temperatura da sala aumentou. Deixem o espectáculo para Hollywood e para coisas como Mar de Chamas. Aqui é o real deal.
Amador Arias (o protagonista que, tal como todos os outros actores, é um não actor e responde pelo seu próprio nome) acaba de sair da prisão, onde cumpriu pena por fogo posto. O filme nunca nos confirma se a condenação foi justa ou não, mas isso não interessa nada porque toda a comunidade da aldeia galega onde vive já tomou a sua decisão. Amador regressa à casa da mãe, Benedicta Sánchez (que, pela existência austera, nos lembra inevitavelmente de Honeyland – A Terra do Mel), onde vai ajudando com o gado, enquanto tenta retomar a normalidade da sua vida.
O Que Arde é assim um filme a reintegração na sociedade, sobre a desertificação do interior e sobre saúde mental, mas tudo isso são temas tão presentes (ou não) quanto a temática dos incêndios. Oliver Laxe capta perfeitamente o existir daquela realidade rural galega, que por vezes parece de outro tempo, ampliada pelo facto de todos os actores serem… não-actores. É uma espécie de cinema verdade, tão austero quanto um Béla Tarr, e recortado por planos incríveis de land art, que nos fazem querer ir revisitar a Galiza assim que pudermos.
O Que Arde é um dos grandes filmes a estrear neste estranho 2020 nas salas de cinema, um ano marcado pelo isolamento. No entanto, já antes do afastamento social ser uma cena, já a Galiza rural parecia estar num processo gradual de afastamento da cidade. E tudo isso agudiza mais os problemas de inclusão, integração e tolerância. É sobre isso O Que Arde. E sobre incêndios. McRoyal Deluxe e lugar de destaque em 2020.
Título: O Que Arde
Realizador: Oliver Laxe
Ano: 2019