Continuam a existir poucos filmes sobre a Primeira Guerra Mundial (principalmente quando comparado com os da Segunda Grande Guerra), mas no espaço de poucos meses estrearam dois e logo com várias semelhanças. Ambos se passam em 1917 e ambos se baseiam nas memórias dos avôs portugueses dos realizadores. Só que um é um Blockbuster internacional multi-nomeado aos Oscares (olá 1917) e o outro é um filme português (olá Mosquito), o que o torna automaticamente num título semi-desconhecido. Mas enquanto que o primeiro é quase e só um exercício técnico e estilístico, o segundo é um filme de corpo inteiro.
A outra grande diferença entre ambos os filmes é que o primeiro se passa nas trincheiras europeias em terra de ninguém e o segundo passa-se em Moçambique. Esse é um episódio pouco conhecido da Primeira Guerra Mundial, especialmente no que diz respeito à história portuguesa, que continua a ser ignorada dos livros desde o Estado Novo. Morreram mais portugueses em África nesse conflito do que em França e, mesmo assim, ninguém quer saber. Além disso, as baixas entre os africanos foram incontáveis, porque na altura eram apenas carne para canhão. O que, tendo também em conta o actual contexto sócio-cultural, faz de Mosquito um excelente filme para se reflectir sobre o racismo estrutural que muitos continuam a negar reconhecer.
Aliás, a primeira cena é de uma brutalidade que faz-nos logo abrir os olhos. E nem quero saber de spoilers, porque isto é daquelas coisas que todos deviam saber. Os soldados portugueses chegam à costa moçambicana e são descarregados do barco às cavalitas dos negros, quais animais de carga. O centro das atenções é e vai ser Zacarias (João Nunes Monteiro), um jovem mancebo que se alistou com todo o fervor da sua juventude para servir a glória da nação.
O filme acompanha Zacarias e nós vemos o que ele vê, à medida que vai penetrando mais e mais no coração de África. Lembramo-nos de O Filho de Saul, até porque Mosquito tem o mesmo sentimento de claustrofobia e sufoco. O realizador João Nuno Pinto foca-se sobretudo nos grandes planos e evita panorâmicas de postal de férias e demais exoticidades africanas. Apesar de Zacarias chegar cheio de ganas e de espírito colonizador, Mosquito rejeita uma atitude e um olhar eurocêntrico. Ou, pelo menos, vai abandonando-o ao longo do filme.
Mosquito é assim uma espécie de jornada ao desconhecido, que é também uma viagem de descoberta interior. Zacarias acaba por ser afastado do seu pelotão, por causa da malária, e irá partir sozinho, apenas acompanhado de dois carregadores, ao encontro dos seus colegas. É uma viagem de estrutura clássica, com O Coração das Trevas como sombra omnipresente. E, tal como Apocalipse Now – o outro grande filme de guerra baseado no livro de Joseph Conrad – Zacarias vai passar por vários desafios (como os da viagem de Hércules) que fazem reflectir sobre a guerra, o colonialismo e a desumanização bélica.
Num país que continua a evitar falar das suas guerras – basta ver quantos filmes existem sobre o Ultramar, o nosso Vietname -, Mosquito olha de frente (e bem nos olhos) uma guerra que a maioria nem sequer sabe que existiu. E sai por cima, com muito para dizer e um McRoyal Deluxe para jantar.
Título: Mosquito
Realizador: João Nuno Pinto
Ano: 2020