The Intruder é o filme mais incaracterístico de todos os que Roger Corman fez (e que foram mais de 50(!)). E isto porque The Intruder é o único filme sério do rei da série b e do camp. Em 1962, Corman empenhava-se em filmar este seu projecto muito pessoal, onde dava também liberdade à sua costela activista de esquerda. O fiasco na bilheteira (que fez, inclusive, que o filme fosse relançado mais tarde com outro título, para tentar capitalizar mais uns trocos) desiludiu o próprio e os investidores e assim se perdeu um Sidney Lumet, para se ganhar o Kubrick do cinema xunga.
The Intruder começa com um muito jovem William Shatner a chegar de autocarro a um lugarejo do sul dos Estados Unidos, em plena integração (quando a lei impôs que os jovens afro-americanos frequentassem a escola). Podia ser um western, daqueles em que o forasteiro chega para impôr a ordem e a moral, mas aqui é precisamente o contrário. Shatner é um racista com uma agenda escondida, que vem semear a discórdia e mobilizar a população contra aquela coisa da dessegregação. Ou seja, em vez de ter um protagonista, Corman tem um antagonista no seu filme. Shatner é um vilão de corpo inteiro, daqueles bem assustadores por serem bem reais, escondido por trás do seu fato branco impecavelmente passado e da lábia afiada.
The Intruder, visto à distância, quase 60 anos depois, continua a ser perturbadoramente actual. Shatner antecipa em décadas a era da pós-verdade, manipulando as massas sem necessitar de redes sociais ou do apoio de Steve Bannon. E em poucos passos tem o povo na mão, especialmente depois duma cena memorável, em que discursa do topo de uma escadaria, como se fosse um comício filmado pela Leni Riefenstahl. Mas vê-se logo que The Intruder é uma obra de ficção, porque no final, quando a população apanha Shatner a mentir, deixam-no cair na total descredibilização. Hoje em dia, por mais que os mentirosos de serviço sejam apanhados a navegar na maionese, os seus apoiantes nunca despem a camisola.
Roger Corman, conhecedor irrepreensível dos mecanismos da linguagem visual, monta com grande eficácia um filme de grande consciência moral, que podia muito bem pertencer ao rol de dramas sociais da Warner. Contudo, o grande achado de The Intruder é William Shatner, num dos seus melhores papeis da carreira. Sem overacting, Shatner é um lobo em pele de cordeiro, que mente, engana, trai e trapaça com o à-vontade dos grandes actores. Este McRoyal Deluxe tem muitas camadas, mas a de cima é toda ela de William Shatner.
Título: The Intruder
Realizador: Roger Corman
Ano: 1962