Em Crash (vou usar aqui o título original, para delícia do Edgar Ascensão), esse filme homónimo do clássico de David Cronenberg, Don Cheadle diz logo a abrir que em Los Angeles as pessoas não se tocam. Há sempre vidro ou metal entre elas. Eu sinto a necessidade desse contacto. E depois diz que é por isso que as pessoas se jogam umas para cima das outras. Se isto não é uma provocação ao Crash original (onde se lê original deve-se ler o que interessa) então não sei o que é.
Crash é o filme em que David Spader e a namorada, Deborah Kara Unger, descobrem uma subcultura de viciados em acidentes de carros, que encontram prazer sexual no choque dos veículos, na deformação da chapa e no estilhaçar dos vidros. E isso projecta-se nos seus próprios corpos, completamente deformados, cheios de cicatrizes e deficiências físicas. Elias Koteas, que é a principal figura do filme (e não Spader ou Unger), é o líder desses freaks, que vive no carro, encena acidentes automóvel famosos (de James Dean a Jayne Mansfield) e é tão creepy que se torna perturbador.
A premissa pode parecer ridícula – e é, se pensarmos muito nela -, mas Crash leva-se tão a sério que nem sequer perdemos tempo com isso. Além disso, serve de metáfora a uma série de coisas, começando logo pela forma como nos relacionamos com a tecnologia em geral e como esta nos veio afastar todos uns dos outros. Paul Haggis percebeu bem isso e transportou-o para o seu próprio Crash, um filme sobre ao racismo e a xenofobia. Além disso, é ainda uma crítica velada à predominância do automóvel, que continua a ser a estrela das cidades. Basta ver como em Lisboa continuam a haver partidos políticos a fazer campanha contra as ciclovias e por mais locais de estacionamento.
Crash é ainda um filme extremamente sensorial e quase uma experiência imersiva, até pela forma como parece distender o tempo, na forma como os actores debitam o texto ou a música monocórdica se imiscui. Faz lembrar Coração de Gelo, em que Herzog filmou todo o filme com os actores hipnotizados. Depois é um filme altamente sexual, que se demora pela carne, pelos fluídos e pelos corpos dos actores em cenas de sexo demoradas, mas que, paradoxalmente, não são pornográficas apesar de algo gráficas. É Cronenberg a utilizar toda a sua aprendizagem na Cinepix, a produtora softcore que produziu os seus primeiros filmes. E depois é todo o body horror a atingir os píncaros como nunca antes aconteceu (e como nunca mais viria a). E isso só poderia ter sido feito por David Cronenber, o mestre do body horror.
Tal como nos melhores momentos de David Lynch, Crash tem momentos em que não temos bem a certeza do que estamos a ver, mas que nos faz sentir coisas. E essas coisas inscrevem-se num espectro tão largo que podem tanto ser sentimentos de asco como de prazer. Crash é um dos pontos altos da filmografia de Cronenberg e um dos seus McRoyal Deluxes vais satisfatórios.
Título: Crash
Realizador: David Cronenberg
Ano: 1996