As pessoas dividem-se em dois grupos: as que dizem que leram O Senhor dos Anéis antes dos filmes do Peter Jackson e os que dizem ter lido depois. Os segundos são uma pequena minoria e os primeiros estão quase todos a mentir.
O certo é que J.R.R. Tolkien é o pai da literatura fantástica moderna e é o seu legado que vemos em todos os filmes que tenham elfos, orcs e criaturas que tais. Enquanto criador da Terra Média, Tolkien gerou um universo tão completo quanto a realidade, para o qual inventou inclusive uma língua, que hoje em dia geeks de todo o mundo estudam: o élfico. Os filmes de Peter Jackson vieram legitimar O Senhor dos Anéis junto do grande público e, verdade seja dita, permitir que se faça um biopic como este Tolkien.
Tolkien é então o filme sobre os anos de formação de John Ronald Reuel Tolkien, desde jovem até começar a escrever O Hobbit. Ou seja, desde os seus tempos de criança pobre, a morte da mãe que o atira para uma casa de acolhimento numa família de bem em Birmingham, a relação com aquela que seria a sua futura esposa e que, tal como ele, era também uma criança adoptada pela mesma família, o percurso académico, o seu grupo chegado de amigos com quem tinha um clube privado e a vocação para as línguas. Tudo isto é contado em flashback, enquanto Tolkien atravessa as trincheiras durante a primeira guerra mundial, que combateu na linha da frente. De fora, fica a sua costela cristã e respectiva educação católica.
Essa linha narrativa nas trincheiras, apesar de ser a mais breve, acaba por ser a mais importante. Primeiro, faz lembrar 1917, no seu percurso linear, em que ao atravessar a trincheira em todo o seu percurso, Tolkien atravessa todas as agruras da guerra. E depois porque o realizador, Dome Karukoski (que conhecemos de Tom of Finland, mas especialmente dos filmes de Aki Kaurismaki), passa o tempo todo a fazer rasantes ao próprio O Senhor dos Anéis, com avistamentos de dragões, nazguls e do olho de Sauron. A influência decisiva da desumanização da guerra na obra do autor.
Quanto ao resto, Karukoski procura apanhar episódios decisivos na vida de JRR Tolkien que justifiquem a obra – a influência de Wagner e de O Anel de Nibelungo, a poesia germânica ou a mitologia nórdica – e vai dando alguns esticões na linha narrativa, para que, em quase duas horas, o filme consiga abarcar tudo o que pretende contar. Tolkien não teve a aprovação dos herdeiros do autor, mas a verdade é que não deixa os seus créditos por mãos alheias. É um filme competente, sem rasgos de maior, fiel à estrutura do filme biográfico, que serve para fazer uma boa introdução ao Tolkien-homem e ao Tolkien-escritor e para jantar um sólido Double Cheeseburger.
Título: Tolkien
Realizador: Dome Karukoski
Ano: 2019