O Mestre do Kung-Fu, além de ter o pior nome de todos os super-heróis da Marvel, é também o mais particular deles todos. É que, de todo o plantel da Marvel, ele é o único de matriz oriental (até mesmo o Punho de Ferro, o que há de mais parecido, é branco), tendo sido criado precisamente para capitalizar todo o buzz que havia à volta das artes marciais nos anos 70, cortesia do Kung Fu de David Carradine. Além disso, até tinha as feições de Bruce Lee, em mais um episódio desavergonhado da bruceploitation. Cinquenta anos depois, o Mestre do Kung-Fu volta a assumir-se como mais uma óptima arma para a Marvel ir vampirizar o mercado chinês, permitindo-lhe ao mesmo tempo aumentar a representatividade asiática nos seus filmes.
Como o próprio nome indica, o Mestre do Kung-Fu é um perito em artes marciais, daqueles capaz de derrotar um batalhão de mauzões apenas com os punhos e sem se despentear sequer. É certo que o seu pai, Xu Wenwi (o grande Tony Chiu-Wai Leung, de Disponível para Amar), se tornou num tipo com poderes mágicos e que não envelhece graças a 10 anéis poderosos que encontrou, mas o Mestre do Kung-Fu não tem nada dos super-poderes mutantes ou alienígenas da maioria dos seus colegas da Marvel. Por isso, depois de um pequeno prólogo que serve para contar a origem dos Dez Anéis e de como Xu Wenwi conheceu a sua mãe, o que encontramos é Sang-Chi (Simu Liu), o nome verdadeiro do Mestre do Kung-Fu, a viver uma vida perfeitamente banal em São Francisco, enquanto arrumador de carros juntamente com a sua melhor amiga, Katy (Awkwafina).
Depois, certo dia, numa corriqueira viagem de autocarro, Sang-Chi é atacado por um bando de chineses peritos em artes-marciais e um romeno com uma espada em vez de braço (Florean “Viktor Drago” Munteanu) e o seu disfarce cai. O passado que tanto procurou enterrar e esconder foi trazido ao de cima, porque o pai está de volta, a sua irmã pode correr perigo (Fala Chen) e a sua mãe pode estar viva (e também em perigo). Sang-Chi e a amiga viajam primeiro para Macau (onde há mais uma bela sequência de pancadaria, desta vez nos andaimes de um arranha-céus – a sério que em Macau reparam arranha-céus com andaimes de bambu?) e, depois, para o meio da selva, onde vão tentar encontrar a aldeia mística perdida da mãe.
Até aí, Sang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis é um desenxabido filme de kung-fu, com algum wi-fu e boas sequências de porrada, que são acima de tudo compreensíveis e não afogadas numa edição totalmente epiléptica. Simu Liu tem pinta para a porrada e o realizador Destin Daniel Cretton aproveita a química com Awkwafina para quase montar um buddy movie, se bem que a segunda abusa sempre do comício relief. Depois, a partir de meio, começa a entrar em jogo a parte mística do filme. Mas como o argumento arrisca-se a entrar num beco sem saída, eis que cai do céu por não ter unhas Ben Kingsley, o Mandarim de Homem-de-Ferro 3 (sim, por causa dos Dez Anéis… who cares?), que é literalmente um deus ex-machina.
Juntamente com um cão fofinho sem cabeça feito em CGI, Ben Kingsley leva-os a todos para a tal aldeia encantada da mãe de Sang-Chi, onde se vão unir ao exército local para conterem a invasão do exército do pai. Claro que tem que haver ainda uma montage musical, em que Awkwafina se torna mestre no arco e flecha e Sang-Chi aprende uma nova arte marcial milenar, que demora séculos a dominar. E, por falar nisso, se Sang-Chi foi treinado anos a fio pelo pai, esse semi-Deus que controla os Dez Anéis mágicos, para se tornar no maior lutador de sempre, e se a sua irmã se limitou a aprender o mesmo às escondidas enquanto os observava, isso não faz dela a verdadeira maior lutador de sempre e dele o segundo?
Enfim, de repente já não sabemos bem o que estamos a ver, o CGI é à barda, há dragões, animais voadores que se alimentam de almas e muita arte marcial mística fajuta, até rebentar tudo no final feliz do costume: os bons ganham, os maus perdem e Sang-Chi e Katy regressam à sua vida normal em São Francisco. Depois, na cena pós-créditos, Wong (Benedict Wong) – que já tinha tido um breve cameo – regressa para fazer a ponte com o Universo Cinematográfico da Marvel. E fica assim despachado o Double Cheeseburger de apresentação do único herói asiático da empresa.
Título: Sang-Chi and the Legend of the Ten Rings
Realizador: Destin Daniel Cretton
Ano: 2021