Em 1993, Jane Campion aparecia de rompante com O Piano, que conquistava o público e a crítica, nomeadamente em Cannes, onde sacava a Palma D’Ouro ex-aequo com Adeus, Minha Concubina. Durante um tempo, Campion andou nas palminhas de toda a gente, mas à medida que a sua carreira ia adormecendo (e os seus filmes a tornarem-se tão anónimos, quanto raros) o seu nome começou-se a limitar a uma espécie de trivialidade: o de única mulher a ganhar a Palma d’Ouro. Até que teve que vir Julia Ducornau liberta-lha dessa maldição. Titane ganhou Cannes este ano e Campion, que já não tinha a exclusividade, deixou de ser uma espécie de curiosidade circense e foi reabilitada, ganhando uma nova vida. Da mesma forma que Paul Verhoeven passou a ser visto com outros olhos, Campion regressou em grande e com um novo filme, O Poder do Cão.
O Poder do Cão é um western, esse género tão masculino, onde Jane Campion se vai intrometer com o seu feminino. É uma mulher num mundo de homens, mais ou menos o mesmo que faz Kathryn Bigelow, que também andou a escarafunchar noutro género cheio de testosterona, o war movie, em 00:30: A Hora Negra. Além disso, Campion recria ainda o Oeste selvagem na sua Nova Zelândia natal, em mais uma intromissão desavergonhada, que faz inclusive de O Poder do Cão a primeira produção neozelandesa da Netflix.
O western já é um género quase limitado aos homens, mas O Poder do Cão ainda é duplamente masculino. É que o seu núcleo principal são dois irmãos, Phil (Benedict Cumberbatch) e George (Jesse Plemons), dois vaqueiros que gerem com grande sucesso um rancho no Nevada. No entanto, ambos não podiam ser mais diferentes um do outro. O primeiro é todo ele testosterona e virilidade, vivendo quase no meio dos cavalos, nunca tomando banho e bebendo e praguejando como um marinheiro (como um cáuboi?); o segundo é delicado e arranjado, sempre impecável no seu fato completo e extremamente educado nas suas relações interpessoais. É uma relação de poder que vai ficar irremediavelmente abalada quando o segundo arranja uma esposa e a traz lá para casa. Além disso, Kristen Dunst traz ainda um filho adolescente, que é ainda mais sensível que George (Kodi Smit-McPhee). Tudo coisas que vão abalar o mundo de virilidade, de caçar javalis e de cuspir para o chão de Phil.
Claro que, como em qualquer universo de matriz patriarcal, é um mundo moldado a partir de um modelo homo-erótico, em que os homens se admiram mutuamente, de forma quase obsessiva. A forma como Jane Campion aborda este assunto é sempre um livro em aberto, feito de sugestões e de silêncios, ao contrário de uma outra cauboiada como O Segredo de Brokeback Mountain, mas é também esse o segredo do sucesso de O Poder do Cão. Da mesma forma que glorifica o seu antigo mentor, que o ensinou a montar e a treinar os cavalos, mas também o salvou numa noite fria, em que tiveram que dormir todos nus no saco-cama(!), Phil vai desenvolver uma relação protectora com Smit-McPhee, que depois do bullying se transforma numa espécie de protegido.
O Poder do Cão é um épico familiar no Antigo Oeste, com cáubois, índios, cavalos e tudo aquilo que moldou o mais importante género cinematográfico norte-americano, excepto a parte do bangue-bangue. Isso é substituído pela parte humana entre aquela família, nomeadamente a forma como as relações de poder se vão alterando ao longo do filme. Jane Campion filma de forma extremamente bonita e com grande controlo sobre todos os pormenores do filme (incluindo uma banda-sonora minimalista que ajuda a criar o ambiente certo) e faz, com este McChicken, um regresso em grande à primeira linha do grande cinema de autor. Agora que já não é a única mulher a ganhar a Palma d’Ouro, podemos começar a apreciar e a redescobrir a obra de Campion de forma autónoma, como bem merece.
Título: The Power of the Dog
Realizador: Jane Campion
Ano: 2021