| CRÍTICAS | Kimi

Enquanto a maioria continua ocupada a discutir o sexo dos anjos, entretida em entender se os filmes da Marvel são cinema ou não – e outros quejandos -, Steven Soderbergh continua a trabalhar. E fa-lo numa óptica quase obsessiva, de workaholic, sem se preocupar muito com o formato. Soderbergh continua a saltitar de género em género, sempre com grande eficácia, especialmente desde que abraçou o digital. Ainda esse era um formato quase exclusivamente caseiro e já o norte-americano fazia Bubble e defendia o digital (afinal, fora ele que se dera a conhecer ao mundo com um filme que tinha como leitmotiv o agora velhinho VHS). E ainda antes sequer do streaming ser uma realidade, já Soderbergh punha o mundo a discutir a relação entre cinema e televisão com Por Detrás do Candelabro, telefilme de prestígio da HBO.

Nos últimos anos, Soderbergh tem estado limitado ao streaming, especialmente na HBO Max, para quem acaba de lançar mais um filme, Kimi. Normalmente são pequenos filmes caseiros, quase artesanais, com reduzido elenco e meios de produção. Kimi não é excepção, se bem que é um regresso de Soderbergh ao cinema de género, nomeadamente ao thriller. E como está sempre atento à actualidade, Kimi é também um filme pós-pandemia, sobre o rescaldo dos confinamentos e do que isso fez à nossa saúde mental.

Na Netflix já tínhamos visto A Mulher à Janela, filme também sobre uma mulher com agorafobia. Em Kimi, Zoe Kravitz tem cada vez mais dificuldades em sair de casa, especialmente desde que o recolhimento domiciliário foi obrigatório durante algumas semanas. Vamos percebendo como isso afecta a sua vida, seja por não conseguir ir ao dentista tratar daquele abcesso que lhe inferniza a vida, seja por não conseguir ter uma relação mais estável com o vizinho da frente além dos encontros frugais na sua cama. Felizmente, o trabalho parece ser a única coisa que não é afectada pela sua incapacidade de sair. Zoe trabalha remotamente para uma empresa de tecnologia, que inventou uma alternativa à Siri e à Alexia – chamada Kimi, como no título -, que tem a vantagem de corrigir os seus erros por mão humana. Ou seja, Zoe ouve todas as mensagens que dão erro na Kimi e corrige-as manualmente, para que no futuro a inteligência artificial já entenda a ordem dada pelo utilizador.

Andamos assim nesta rame-rame, quando Zoe Kravitz ouve algo que a inquieta. Vindo algures do mundo, chega-lhe uma mensagem abafada pela música em altos berros, mas em que é possível ouvir uma mulher a pedir socorro. De repente, além de Janela Indiscreta, temos Steven Soderbergh a atirar a Blow Out – Explosão, aquela versão do Brian De Palma do História de um Fotógrafo, do Antonioni, em que um tipo ficava obcecado com uma gravação audio em vez de uma fotografia. Zoe vai ficar intrigada e perturbada com aquele pedido de ajuda, vai tentar contacto a empresa para tentar chegar à fonte da mensagem e, de repente, está metida na toca do coelho, entrando num mundo de perigo e de conspirações.

Neste último acto, Kimi acaba por entrar em demasia nos territórios do thriller. É como se, quando Zoe Kravitz finalmente consegue encher-se de força e sair de casa, o filme não sabe como resistir à contenção das quatro paredes e rebenta, expandindo-se em perseguições, esfaqueamentos e sopapos. Soderbergh mantém sempre aquele seu cinema muito estilizado, em que a câmara parece deslizar nos travellings, não se limitando a ilustrar a história, mas também sem se sobrepor em nada ao argumento. Não é um dos seus melhores filmes, mas, como é costume, também não é nada de se deitar fora. Vê-se sem fastio, devora-se o Double Cheeseburger de uma só vez e ficamos prontos para o próximo filme de Soderbergh. Até para o ano, meu caro!

Título: Kimi
Realizador: Steven Soderbergh
Ano: 2022

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