Olhamos para um filme como O Príncipe dos Coelhos, em que um grupo de coelhos ameaçados pela construção humana no seu terreno tem que fugir em busca de um novo lar, e imaginamos imediatamente uma fábula tipo Disney. Contudo, a antropomorfização destes animais nada tem a ver com a do Rato Mickey e a dos seus amigos. É que estes, apesar de falarem (e de terem até o seu próprio imaginário, com deuses e mitos), não se comportam como humanos, mas antes como… coelhos.
Apesar dos desenhos-animados, o realismo de O Príncipe dos Coelhos aproximam-no mais de um documentário como A Marcha dos Pinguins do que algo como À Procura de Nemo, por exemplo. E, por isso, os coelhos sangram, sofrem e matam (e morrem) quando tem que ser, transformando-se numa das animações mais negras de sempre. Rezam as crónicas que o filme continua a dar azo todos os anos, no Reino Unido, a queixas de pais consternados, que são apanhados desprevenidos sem saberem bem ao que vão.
O Príncipe dos Coelhos começa contudo de forma bem diferente. Num prólogo em que o tipo de animação é diferente da do resto do filme, indo buscar influência à cultura sul-americana pré-colonial (realizada por John Hubley, que entretanto faleceria e deixaria o filme incompleto, abrindo caminho para a estreia de Martin Rosen), assistimos ao mito fundador da civilização coelha: um Deus omnipresente criou todos os animais iguais, mas um coelho insolente achou que os da sua espécie eram mais iguais do que os outros. Claro que isso irritou o Todo-Poderoso, que os castigou para todo o sempre, tornando-os numa presa apetecível para a maioria dos predadores.
Este capítulo serve para nos introduzir à natureza dos coelhos: matreiros, ardilosos, rápidos e corajosos, características fundamentais para sobreviverem ao longo dos tempos. Por isso, quando Fiver (voz de Richard Briers), um coelho sensível e qualidades mediúnicas, tem uma visão do seu vale a ser invadido por um mar de sangue (tipo Shining, mas sem o elevador), uma pequena coalhada (sim, é o colectivo de coelhos) liderada pelo bravo Hazel (voz de John Hurt, que se estreava aqui na animação, género onde se tornou no actor britânico mais respeitável e com a melhor filmografia) decidem partir, em busca de um novo lar onde possam viver em paz.
O Príncipe dos Coelhos é assim um filme de aventuras, com um herói colectivo, que utiliza assim os signos do género do filme de homens em missão. De etapa em etapa, a coalhada vai ultrapassando os perigos com que se vai deparando (caçadores, ratazanas e, no final, um outro bando de coelhos malvados), em que cada um deles funciona como uma metáfora à nossa civilização. É, por isso, um Apocalypse Now com coelhos, que critica obviamente o avanço indiscriminado do Homem sobre a Natureza em nome do progresso, mas também os regimes políticos autoritários, a guerra e violência entre iguais.
Com uma animação quase expressionista, O Príncipe dos Coelhos é uma animação única na história dos desenhos-animados. O realizador Martin Rosen haveria ainda de adaptar outro dos livros do autor, Richard Adams, The Plague Dogs, que também é muito bom, mas que já não tem o mesmo efeito uau. O Príncipe dos Coelhos é um McRoyal Deluxe que nos lembra pela enésima vez que a animação também pode ser adulta.
Título: Watership Down
Realizador: Martin Rosen
Ano: 1978