Cheryl Dunye, quando estava a terminar a escola de cinema, olhou em volta e não se reviu naquelas pessoas. Enquanto mulher, negra e lésbica, Dunye tinha dificuldades em encontrar semelhantes. Mas com assim? Será que, num século de história do cinema, nunca terão havido outras como ela a fazer filmes? Ou será que esta é uma indústria que potencia a invisibilidade das minorias?
Cheryl Dunye decide então começar a olhar para trás e a estudar a história da sétima arte, especialmente o da época de ouro de Hollywood e o de um tipo de personagem muito específico: o da mammy, mulheres negras que faziam de criadas e amas na América esclavagista do sul e que pareciam ser as únicas a ter um pouco de visibilidade do topo do seu estereótipo. Toda a gente conhece Hattie McDaniel, a mais famosa mammy de todas, que até lhe valeu um Oscar em E Tudo o Vento Levou. Mas Dunye acaba por descobrir outra actriz que lhe chama a atenção, num obscuro filme que nunca ninguém ouviu falar. Nos créditos, apenas uma descrição: the Watermelon Woman. Quem foi aquela mulher? Que raio de nome é esse? Dunye decide então fazer um documentário sobre a Watermelon Woman e descobrir tudo o que possa sobre essa misteriosa figura.
E agora o plot twist: a Watermelon Woman não existe. Numa fusão a frio entre os limites do documentário e da ficção (o que hoje se chama de ficção do real e em que os novos cineastas portugueses parecem ser exímios a fazer, Miguel Gomes à cabeça), Cheryl Dunye dá corpo a todas as essas pessoas que a indústria cinematográfica atirou para debaixo do tapete, através de uma personagem imaginária. Mas a ironia do filme não se fica por aí. É que, ao levar-se a si própria para o centro do filme, Dunye não só desmonta o dispositivo fílmico, como dá tempo de antena à única cineasta negra e lésbica que conhece verdadeiramente – ela própria – e, consequentemente, às suas reais inquietações.
The Watermelon Woman é assim um filme fluído, que navega entre géneros, abocanhando tudo o que consegue naquela sua voragem insaciável típica de uma primeira obra. Dunye passeia-se pelo mockumentário, criando as cenas dos filmes em que participa a Watermelon Woman e fabricando a sua biografia, qual Zelig queer e racializado, além de convocar personagens reais (a socióloga e activista feminista Camille Paglia) para momentos meta-satíricos hilariantes. E Cheryl Dunye reflecte ainda sobre a sua condição quase invisível na indústria onde quer ser visível, criando uma relação com uma amiga de longa data (Valarie Walker) e com uma nova namorada (Guinevere Turner), branca e meio snob. para isso, recorre ao cinema verdadeiramente independente, sem respeito por qualquer norma ou convenção, que foi também o que formou Spike Lee (olá Os Bons Amantes) ou Kevin Smith (olá Clerks).
Por entre a película e os momentos em fita VHS, The Watermelon Woman tem ainda um cunho artesanal, que lhe confere maior sinceridade e personalidade, transformando-o numa obra única. Também não é por acaso que The Watermelon Woman é considerado num dos momentos fundadores do cinema queer e LGBT. Cheryl Dunye foi recompensada com um bilhete para a primeira liga de Hollywood, mas quem saiu mesmo a ganhar fomos nós, especialmente com este McRoyal Deluxe.
Título: The Watermelon Woman
Realizador: Cheryl Dunye
Ano: 1996