A princesa Sissi, o apelido carinhoso pelo qual é conhecida popularmente a Imperatriz Isabel da Baviera da Áustria (e Rainha Consorte da Hungria), tornou-se ao longo dos anos no arquétipo da princesa do conto de fadas. Ou, pelo menos, para todos aqueles que já não têm idade para acreditar nas fábulas da Disney. A culpa é essencialmente da cultura popular e, mais precisamente, de Romy Schneider e da sua Trilogia da Sissi, mas a verdade é que a sua imagem continua bem presente no imaginário colectivo (se bem que, em Portugal, há ainda o extra da sua relação com a Madeira, onde esteve por duas vezes – se bem que, depois, haveria de construir um palácio antes na ilha grega de Corfu… e quem é que a pode censurar?), basta ver que, só no último ano e meio, surgiram 5 filmes, directa ou indirectamente, relacionados com ela (incluindo a série da Netflix).
Ou seja, para quem está habituado a essa imagem cor-de-rosa de Sissi, onde tudo são unicórnios, arco-íris e algodão doce, Corsage – Espírito Inquieto é como se fosse o negativo. Além disso, o filme não é historicamente correcto e a realizadora Marie Kreutzer tem a liberdade criativa de criar episódios, forjar relações (como uma com o cineasta Louis Le Prince), tatuar a pele e tomar à letra a máxima se não aconteceu, poderia ter acontecido. O objectivo é lembrar, pela enésima vez, que ser aristocrata não é fácil. A princesa Diana que o diga.
Por isso, a Sissi de Corsage – Espírito Inquieto (ou será que devemos dizer a Sissi de Vicky Krieps?) tem que lidar com as opiniões inconvenientes dos seus convidados ou as letras gordas dos tablóides sobre o seu peso (e isso poderá explicar os seus distúrbios alimentares), com as expectativas da vida real e do respectivo protocolo (com a qual teve sempre dificuldade em se adaptar) e, claro, com a sua posição enquanto mulher num mundo extremamente patriarcal. Só é estranho não fazer uma posição mais declarada sobre o espartilho/corpete, enquanto peça de vestuário para controlar/prender a mulher (simbólica e literalmente), tendo em conta o seu próprio título.
Marie Kreutzer não está aqui para seguir o protocolo e atira-o às malvas. E nem sequer estou a falar dos toques anacrónicos, como um balde e uma esfrega ali, um sinal de saída de emergência acolá ou um concerto ao som dos Rolling Stones em harpa (ou da Marianne Faithfull, consoante o ponto de vista), até porque, para isso, Sofia Coppola fê-lo melhor na sua Marie Antoinette. Estou antes a falar da forma como quebra o filme de época, mostrando a intimidade entre Sissi e o Imperador Francisco José (Aaron Friesz) por exemplo (sim, estamos a falar de sexo).
Falta então um parágrafo para falar de Vicky Krieps, que é metade da força motriz do filme. A actriz dá o corpo ao manifesto e é ela que incarna toda a angústia existencial da princesa Sissi, tornando-a sua. Por isso, Corsage – Espírito Inquieto (mais um daqueles subtítulos nacionais a querer sublinhar a traço grosso o que o filme tem para dizer) recusa por completo o filme de época, o filme histórico ou o biopic. Este é antes um filme sobre a desadequação e o sentimento de quem se sente sempre deslocado do seu próprio local, que recusa o folclore da princesa Sissi e procura antes focar-se na mulher por trás do mito. A única coisa que é um facto aqui é o McChicken, tudo o resto poderia ter sido, se é que não o foi mesmo.
Título: Corsage
Realizador: Marie Kreutzer
Ano: 2022