Há duas formas de encarar a cidade costeira de Great Yarmouth, na Inglaterra. A primeira é enquanto estância balnear solarenga, muito popular entre os britânicos de meia-idade. E a segunda é enquanto cidade fabril, onde existe uma grande comunidade portuguesa, altamente precária – os provisional figures de que fala o subtítulo deste filme de que vos vou falar -, que é quase carne para canhão.
Marco Martins escolheu a segunda, num projecto intensivo, que primeiro foi uma peça de teatro e agora é um filme. Marco Martins reuniu-se e incluiu essa comunidade lusa na construção do filme, usando-a como actores, mas também aproveitando ideias e relatos, enquanto que Beatriz Batarda fez aquilo que faz melhor: deu o corpo ao manifesto. Literalmente. A actriz esteve a viver e a trabalhar em Great Yarmouth, na mesma fábrica de abate de perus que vemos no filme, emulando a mesma condição da personagem que estrela o filme. Stanislavski teria ficado orgulhoso.
Great Yarmouth é assim um docudrama, género híbrido que o novo cinema português tem vindo a cultivar como ninguém. Partindo dessa realidade muito específica, Marco Martins cria uma espécie de filme negro, que relembra muitas vezes o cinema directo de A Morte de um Apostador Chinês. Afinal de contas, Cassavetes tinha nesse filme um gesto semelhante, o de cruzar o realismo social com as temáticas de apelo mais popular (kiss kiss bang bang). A diferença é que o mundo da mafia que Great Yarmouth aborda é outro: o da exploração laboral.
Beatriz Batarda gere então, com o namorado inglês (Kris Hitchen) – sendo assim uma assimilada e, como tal, uma personagem dividida entre dois mundos -, uma rede de hotéis decrépitos onde aloja trabalhadores portugueses acabados de chegar, para depois os colocar na tal linha de montagem a degolar perus. É também um negócio que é uma linha de montagem, mas de pessoas. Batarda é uma anti-heroína, na verdadeira acepção do termo. Ela, que continua a cultivar o sonho de abrir um hotel de férias para os velhinhos, com karaoke e line dancing (e o mantra que está sempre a repetir sobre os serviços a oferecer faz lembrar a carta que o Ventura repetia incessantemente em Juventude em Marcha, o que não é despropositado já que estamos a falar de docudrama social), não deixa de ser também uma cuidadora daquela gente. Não é por acaso que todos a tratam por mãe. Tem é as suas limitações.
Com uma fotografia extremamente cinematográfica, que por vezes lembra a cidade estilizada de Michael Mann, Great Yarmouth tem ainda pozinhos do cinema de denúncia social de Ken Loach. No entanto, a sua grande referência é Noite Escura, a obra-prima de João Canijo, de quem Marco Martins é admirador confesso. É fácil encontrar ecos de um no outro, até porque partilham a mesma actriz. Mas não só. Great Yarmouth é também uma tragédia (até está bem dividido em três actos e tudo, na boa tradição grega), onde as várias histórias e personagens do filme se sobrepõem como camadas. Acontece sobretudo nas cenas na fábrica, em que a câmara está a percorrer os rostos dos trabalhadores e os microfones estão a captar as conversas de outros que estão fora de campo, algo que era característico de Noite Escura.
Mas Great Yarmouth não tem o mesmo controle do seu arco narrativo. E, a partir da entrada em cena de Nuno Lopes (um trabalhador que vem para Inglaterra à procura do irmão), o filme começa a dar alguns estações que nem sempre fazem sentido. Mas não deixa de ser um filme muito recomendável e, provavelmente, um dos grandes momentos do cinema nacional recente. Beatriz Batarda prova pela enésima vez porque é a melhor actriz portuguesa da actualidade (de sempre?) e, num ano em que Afterlife nos deu um óptimo momento de karaoke, Marco Martins quis também rivalizar muito de perto com isso. Por isso, não tenho qualquer problema em inflacionária desavergonhadamente o McRoyal Deluxe.
Título: Great Yarmouth – Provisional Figures
Realizador: Marco Martins
Ano: 2022
Pingback: | CRÍTICAS | Os 10 Melhores Filmes de 2023 | Royale With Cheese