Quando estreou Crimson Peak – A Colina Vermelha, Guillermo Del Toro insistiu em dizer, nas entrevistas de promoção do filme, que era um romance gótico. É que o estúdio tinha entrado em curto-circuito. Que raio é um romance gótico no século XXI? Isso não é um estilo do século XIX? Promoveram-no então como um filme de terror, a bilheteira ressentiu-se e o filme considerado um fiasco. Humpf, terá suspirado Del Toro.
Menos de uma década depois surge Saltburn, o novo filme de Emerald Fennell, que indica Reviver o passado em Brideshed e Rebecca como grandes influências – dois dos grandes títulos de referência do romance gótico. E, na verdade, estão lá todas as grandes marcas do género: uma atmosfera de medo e de assombração constante e os armários cheios de esqueletos do passado ou a vingança como temas recorrentes. A diferença é que estamos no século XXI, a banda-sonora é feita de Bloc Party, Arcade Fire ou MGTM e não há elementos propriamente… góticos. O que é isto então? E se Emerald Fennell acabou de inventar um novo género, o romance gótico para o novo milénio?
Aliás, já o anterior Uma Miúda Com Potencial era assim: um filme que misturava géneros e que, por isso, nos estava sempre a gorar as expectativas. Saltburn leva isso um passo à frente, incluindo o próprio formato em que é filmado. O 4 por 3 quadradão, pouco habitual, dá-nos logo um sentimento de estranheza. E depois começa pelo longo prólogo, que é uma espécie de filme de liceu estendido, um Gostam Todos da Mesma sem o carácter peculiar de Wes Anderson. Oliver Quick (Barry Keoghan, que está a terminar o doutoramento em esquisitóides sinistros, aproveitando o facto de Ezra Miller parecer ter desistido do jogo) é um caloiro que acaba de entrar para a elitista universidade de Oxford e que tem dificuldade em fazer amigos e em se integrar. Até que, por uma série de coincidências, acaba por se tornar no bff de Felix Catton (Jacob Elordi), o bonitão e popular da escola que as mulheres desejam e que os homens querem ser como ele. Em que grupo se inscreverá Oliver?
Até que vêm as férias do verão e Felix convida Oliver a ir passar a temporada com ele, na sua casa de familia. Saltburn é uma mansão vitoriana, uma Manderlay em que nem sequer falta a sua Mrs. Denvers (Paul Rhys é Duncan, o chefe dos mordomos, com a sua pose impecável e ar de assombração sempre presente nas sombras e nos cantos), e onde se reúne a irmã (Alison Oliver), o primo queer (Archie Madekwe), uma amiga de família deprimida (Carey Mulligan) e os pais (Rosamund Pike e Richard E. Grant). Por momentos, parece que vamos ter o novo Chama-me Pelo Teu Nome, mas na Inglaterra aristocrática, com fluídos e tudo (numa cena tão perturbadora quanto arriscada – e há várias assim). Mas como sabemos, é normalmente nas famílias ricas que a disfuncionalidade é pior. A diferença é que está, normalmente, mais bem escondida.
Saltburn torna-se então num jeux de massacre altamente cruel, que vai mergulhar fundo nas obsessões, psicoses e segredos daquela gente, manipulando os seus destinos à medida que Barry Keoghan vai trazendo para fora do armário todos os esqueletos que vai encontrando (incluindo aqueles que nem eles sabiam que tinham armazenados lá no fundo). É ele o principal dínamo do filme, já que é ele que espoleta as acções e faz a intriga acontecer. Emerald Fennell diverte-se então a misturar géneros e a transformar Saltburn em algo único.
Só que a realizadora parece não confiar no seu trabalho e, no final, sente a necessidade de nos explicar o que andou a fazer. O clímax de Saltburn é então demasiado explicativo, assim como Em Parte Incerta também já o era de creta forma (outra das referências directas). Depois de um salto demasiado grande, Saltburn aterra um pouco ao lado e falha a saída. Isso não quer dizer que Saltburn seja um filme falhado ou menos recomendável por causa disso. O McChicken vale cada dentada e é um melhor remake de Rebecca do que o remake oficial de Ben Weatley.
Título: Saltburn
Realizador: Emerald Fennell
Ano: 2023