Mais do que a vitalidade do cinema espanhol, temos que falar da vitalidade do cinema galego. Não por qualquer orgulho regionaliza, mas porque filmes como O Que Arde ou As Bestas não podiam ser feitos noutro lado. São filmes que captam o território, não só a paisagem física, mas também a emocional. Os romanos chamavam-lhe o genius loci, ou seja, o génio do local, que depois a Arquitectura adoptou para definir uma abordagem fenomenológica do ambiente e da interacção entre lugar e identidade.
No papel, As Bestas soa a um “simples” thriller policial. Baseado livremente num caso verídico e ambientado numa aldeia da Galiza a braços com a desertificação e a falta de oportunidades, o filme centra-se na vida de um casal de franceses (Denis Ménochet e Marina Foïs) que se fixam no lugar para praticar agricultura biológica e construir uma ideia de comunidade mais humana. No entanto, uma facção local não os perdoa por terem recusado vender os terrenos a uma companhia de energia eólica, que iria trazer muito dinheiro mais depressa, e o ressentimento vai escalar rapidamente do bullying até ao crime. Os irmãos Xan (Luis Zahera) e Loren (Diego Anido) são a cara desse descontentamento, que depois transborda facilmente para a xenofobia. E vão ser eles os antagonistas desta história.
No entanto, As Bestas é muito mais do que isso, devido ao trabalho de realização de Rodrigo Sorogoyen, num registo seco e descarnado até ao osso, quase naturalista, mas nunca sem ceder ao postal de férias – armadilha em que poderia ser fácil de cair tendo em conta o tempo que passa na natureza e na paisagem montanhosa da Galiza. É nos diálogos e nas cenas de conjunto que o filme se faz. Sorogoyen limita-se a apontar a câmara, em planos quase fixos e a focar os homens que vão falando e essas cenas são os verdadeiros duelos de As Bestas.
Depois, o crime conhece, mas As Bestas continua. Se até aí havia uma ferida aberta naquela comunidade, agora Rodrigo Sorogoyen vai remexer-lhe e escarafunchar com um pau. Marina Foïs recusa desistir de encontrar o corpo desaparecido do marido (ou os culpado), mas mais uma vez o thriller é apenas um pretexto para o verdadeiro filme. A sua filha vai regressar à aldeia para resgatar a mãe do trauma e traze-la de volta à cidade, mas perante a recusa desta o choque acontece. E não é bonito de se ver. Há uma cena fulcral, feita de palavras e montada à volta do diálogo entre ambas, que é um autêntico duelo sem armas. E abre portas ao último acto, ao fechar do arco narrativo e à redenção final. As Bestas é mais um grande McRoyal Deluxe e, ao lado de O Que Arde, o grande título desta nova vaga do cinema de nustros hermanos.
Título: As Bestas
Realizador: Rodrigo Sorogoyen
Ano: 2022