As guerras culturais actuais têm provocado um fenómeno interessante (perigoso, mas interessante): a reboque de conceitos e ideias tão balofos quanto vazios, como o cancel culture ou o wokismo (coisas tão esvaziadas de sentido que servem para colar a tudo), a direita tem-se vindo a apropriar de um valor que é tradicionalmente da esquerda, que é a liberdade. E esta, não só se tem deixado levar na cantiga, como tem ajudado. Por isso, sempre que um “cantor de intervenção” como a Garota Não se queixa da cultura de cancelamento ou um humorista como a Joana Marques diz barbaridades como esta morre uma foca no Ártico.
American Fiction, o filme de estreia de arromba de Cord Jefferson (logo com um Oscar no bolso de argumento adaptado e uma nomeação a melhor filme), arrisca-se por isso a ser utilizado nestas guerras culturais de forma errónea. É que é fácil manipular a mensagem que o filme passa. American Fiction não quer criticar a representatividade cada vez maior da comunidade negra nos filmes de Hollywood, que tem vindo a combater uma norma que ainda continua a ser predominantemente branca, mas sim mostrar como isto foi rapidamente apropriado pela máquina capitalista para continuar a perpetuar estereótipos raciais e, com isso, manter o racismo estrutural. E que é uma máquina antropofagista que a própria comunidade negra alimenta, encontrando equivalência nos exemplos dados no parágrafo inicial.
Monk (Jeffrey Wright) é então um escritor publicado (apesar de já não editar nada há 20 anos) e professor de Literatura tão cínico quanto auto-depreciativo. A sua personagem não é muito diferente da do professor de Paul Giamatti, em Os Excluídos, um filme que também foi colega de turma de American Fiction nas últimas nomeações ao Oscar. Monk está cansado que a máquina do entretenimento (que aqui se foca na literatura, mas que também se estende ao cinema e até à música) explore os estereótipos raciais da comunidade afro-americana sobre a desculpa da representatividade, perpetuando assim a figura do marginal, do segregado e do abusado pelas forças policiais. E ele, negro de classe média, não se revê nessa representação.
Assim, perante um bloqueio de escritor, esse dilema existencial e a vida familiar que se desmorona (uma irmã que morre precocemente, a saúde da mãe que começa a ceder para uma doença degenerativa, o irmão mais velho que saiu finalmente do armário e que quer compensar o tempo perdido recorrendo aos excessos e, claro, toda uma série de traumas familiares reprimidos ao longo dos anos), Monk decide fazer um teste. Escreve então um livro sobre a experiência negra na América, não a real, mas aquela que ele crê que as pessoas querem ler, sob pseudónimo, criando inclusive uma persona imaginária: um fugitivo à polícia e ex-presidiário. E ainda tem o desplante de lhe chamar Foda-se. E não é que lhe compram aquilo!
De repente, a partida de Monk começa a ganhar uma dimensão cada vez maior, até se tornar mesmo maior que o criador. E tudo isto ao mesmo tempo que a sua vida pessoal não parece também melhorar. Por isso, American Fiction vai navegar por entre estas questões morais, entre se manter fiel aos seus princípios e crenças ou ceder à tentação do dinheiro, mas também entre questões de raça e até de género, numa América que continua a cavar fossos sociais, mesmo que inconscientemente.
Cord Jefferson constrói tudo isto com uma abordagem descontraída e que recorre ao humor sempre que se vê numa situação desagradável, utilizando o comic relief como uma resposta aos momentos mais pesados e como forma de desarmar a questão. American Fiction segue a tradição existencial de resolver os problemas pessoais no ecrã de cinema em vez do divã do psicanalista de Woody Allen, se bem que de forma bem menos profunda. Mais interessante são os momentos em que o faz desconstruindo os mecanismos da própria ficção (do romance ou do cinema), ao transformar o filme no próprio livro que Monk está a escrever e só é pena que esses momentos sejam pontuais e não aconteçam mais vezes.
American Fiction é assim um óptimo filme para pensar sem se demorar particularmente nas palavras, que mesmo sem ser brilhante, é particularmente pertinente. O McBacon fica-lhe bem. E esperemos que contribua para alterar algumas ideias-feitas e para evitar a perpetuação de determinados estereótipos que a máquina capitalista de Hollywood continua a engordar.
Título: American Fiction
Realizador: Cord Jefferson
Ano: 2023