Sean Baker venceu a última Palma D’Ouro com Anora e, de repente, o cinema independente norte-americano voltou a importar. Afinal de contas, desde 2011 que um norte-americano não vencia o mais importante prémio do festival de Cannes. Ainda por cima, esse último a faze-lo foi Terrence Malick. No entanto, há que dizer que Sean Baker já tinha merecido o Oscar a que foi nomeado, por alturas do The Florida Project, que continua a ser o seu melhor filme. Mas vocês ainda não estão preparados para essa conversa.
Anora é o nome da protagonista do filme, Miley Madison, se bem que ela prefere que a tratem por Ano, renegando assim as suas origens russas. Ela é uma dançarina exótica (atenção ao itálico, é propositado), que trabalha num clube nocturno a vender lap dances e a fazer shows no varão. Até que, certo dia, chega ao estaminé Ivan (Mark Eydelshteyn), um puto mimado e podre de rico, filho dum oligarca russo qualquer, que se quer divertir. Aliás, a sua vida são 24 horas non-stop de diversão hedonista, bancada pelo dinheiro do pai. Ani é a única que fala russo em todo o bar e, por isso, vai acabar com Ivan.
A coisa escala em pouco tempo. Os dois começam a tornar-se cada vez mais próximos e Ivan contrata-a para uma semana em exclusivo. De repente, Anora torna-se na versão moderna do Pretty Woman – Um Sonho de Mulher, em que a sex worker conhece um ricaço, apaixonam-se e a sua vida dá uma volta de 180 graus (e, aliás, Sean Baker gosta destas personagens das margens, como já vimos em Tangerine). No fundo, é o clássico conto de fadas da miúda pobre que conhece um príncipe numa armadura dourada, que chega de cavalo para a resgatar para uma vida de felicidade (e de luxo, neste caso).
Mas Anora é bem mais do que essa descrição limitadora. É certo que se perde durante muito tempo nessa parte, com Sean Baker a filmar muitas festas sem fim, cheias de álcool, droga e dinheiro desperdiçado, em hotéis de luxo, casinos e mansões com mais assoalhadas do que o prédio onde eu vivo, como se o Harmony Korine tivesse vindo fazer a sequela do Spring Breakers – Viagem de Finalistas. Mas quando os pais de Ivan descobrem que o filho se casou com uma prostituta e enviam um padre ortodoxo arménio (Karren Karagulian, um habitué de Sean Baker) para por ordem na casa, a comédia romântica (e screwball) vai dar lugar a outra coisa.
Anora ganha uma outra energia, com muita confusão, coisas partidas, gritos e palavras feias, que redefine todo aquele contexto de caos felliniano, trocando os italianos pelos russos. Esquecemos o Pretty Woman – Um Sonho de Mulher e mergulhamos de cabeça numa versão do Diamante Bruto. Até aquele cinema de Baker, muito solar e ambiental (ele que é o único capaz de transportar para o cinema uma certa estética e linguagem de internet, muito do nosso tempo), sofre uma alteração, tornando-se mais frenético, nervoso e mais câmara ao ombro.
São duas metades diferentes, mas que pertencem à mesma moeda. É uma comédia, mas uma comédia triste, sempre à beira da tragédia. E é esse o grande trunfo de Anora. É que, apesar de ser à superfície uma comédia romântica, essa capa não é nada espessa e basta passar com a unha para destapar outras camadas de psicologia mais profunda, que levam à perspectiva de classe ou ao choque cultural.
E, claro, depois há Mikey Madison, mais um achado daquele casting vencedor do Era Uma Vez em Hollywood, em que todas as miúdas que pertenciam à Família de Charles Manson hoje dominam Hollywood como algumas das actrizes mais promissoras do momento. Como Sean Baker disse em entrevista, Anora é um título que ninguém consegue se lembrar, mas que, depois de verem o filme, nunca mais se vão esquecer. E como todos os filmes com o nome da protagonista no título, é ela o centro de todas as atenções, um poço de força que só quebra precisamente no último plano. Anora é um óptimo McBacon, que fica a uma batata-frita de distância do McRoyal Deluxe. Literalmente a uma batata-frita de distância.
Título: Anora
Realizador: Sean Baker
Ano: 2024