Existem vários filmes recentes que têm esbatido a fronteira entre os homens e os seus melhores amigos, os cães. Luc Besson já o fez por duas vezes, inclusive. Primeiro, com Jet Li em Danny The Dog – Força Destruidora – onde esse era criado como um cão de ataque e comportava-se como um – e agora mais recentemente com Caleb Landry Jones, em Dogman – em que este é tratado como um cão pelo pai. Há também o Dogman, de Matteo Garrone, em que os cães são mais uma metáfora do protagonista a viver nas margens do que outra coisa mais linear. Mas este Cão, de Samuel Benchetrit (que adapta o seu próprio livro), é outra coisa.
Em Cão, Vincent Macaigne é um tipo… especial, que não percebe as directas que a vida lhe dá, quanto mais as indirectas. Logo no início, a mulher (uma sempre bem-vinda, mas cada vez mais rara, Vanessa Paradis) coloca-o fora de casa, sob o pretexto de ter uma alergia rara a… ele próprio(!). O filho percebe que tem um loser como figura paterna e aceita essa condição, se bem que se aproxima dela para lhe extorquir dinheiro. E o patrão, o dono de uma loja de electrodomésticos a definhar, vê nele o elo mais fraco do seu negócio, metendo-o na rua assim que pode.
Vincent Macaigne é assim um primo não muito distante de Forrest Gump, só que a sua falta de sorte é exponencialmente inversa à de Tom Hanks. Enquanto Forrest Gump era um pateta a quem a vida sorria sempre que ele dava um pontapé numa pedra, Vincent Macaigne é espezinhado por ela repetidamente. Veja-se o que acontece quando compra um cão (que se chama… Hitler, em mais um exemplo do humor pouco convencional do filme) e, na cena seguinte, este é esmagado por um camião, numa cena tão seca que nos deixa a língua colada ao céu da boca.
Apesar de perder a mulher, a o filho, a casa, o dinheiro, o emprego e, basicamente, a sua vida, é o buraco deixado pela morte precoce daquele cão que Macaigne vai preencher. E, como tal, começa a comportar-se como um cão. Isso é aproveitado e incentivado por Bouli Lanners, um cruel e perverso treinador de cães, que o mete a dormir aos pés da sua cama, enquanto lhe dá ossos para roer.
Cão é um filme absurdo, tão seco e descarnado até ao osso, que nos deixa desconfortáveis. Há momentos em que sorrimos, mas é de nervoso miudinho. Por um lado, porque não sabemos bem o que estamos a ver e, por outro, porque Cão não tem limites e pode levar as coisas longe de mais, até aos limites do perturbador. Por um lado, há algo nesse absurdo que lembra o belga Manual de Instruções para Crimes Banais. E, por outro, há uma costela surrealista, que vai tanto a Buñuel como a coisas menos profundas, como Quentin Dupieux.
Claro que há toda a profundidade filosófica que o cão comporta, enquanto símbolo e metáfora, assim como a própria desuminazação do protagonista, num processo semelhante ao de Gregor Samson, o protagonista de A Metamorfose de Kafka, mas não tão literal. Contudo, essas dicas são sempre mais sugeridas ao espectador do que exploradas ou aprofundadas. Cão é um pequeno McBacon (em duração, não em qualidade), que o vai deixar desconcertado mais vezes do que estava à espera num filme com este tom.
Título: Chien
Realizador: Samuel Benchetrit
Ano: 2017