| CRÍTICAS | Springsteen – Deliver Me From Nowhere

O biopic está praticamente confinado a dois modelos: o do artista predestinado e genial, que acorda de manhã bafejado pela inspiração e cria obras-primas à escala mundial; ou o do artista atormentado, cheio de traumas e fantasmas interiores, que contribuem para a sua inspiração criadora de obras-primas à escala mundial. E, muitas vezes, um não está totalmente livre do outro, podendo inclusive estarem dependentes entre si.

Springsteen – Deliver Me From Nowhere, o biopic de Bruce Springsteen durante um curto período de 2 anos – mais ou menos entre o final da digressão do The River e a gravação e lançamento do Nebraska – inscreve-se claramente no segundo modelo. Ao regressar a casa depois de uma digressão nacional bem sucedida, que o deixa quase quase à beira do estrelato mundial, Springsteen vê-se atormentado pela depressão e pelos fantasmas do passado – a relação tempestuosa com o pai alcoólico, as expectativas em fazer um novo disco cheio de hits orelhudos ou o sentimento de obrigação em se manter o working class hero modelo para os seus iguais de Nova Jersey, sem trair as raízes -, refugiando-se no gravador de quatro pistas que havia comprado para registar umas ideias e que acaba por servir para gravar o seu melhor disco da carreira.

Por momentos, parece que Springsteen – Deliver Me From Nowhere vai ser um catálogo de clichés do género. Começa em regime de flashback, a preto e branco e tudo (porque toda a gente sabe que o passado é sempre a preto e branco, até para garantir que o espectador sabe que estamos a recuar à infância do protagonista), com o jovem Springsteen a ter de ir ao bar local buscar o pai que se está a enfrascar, e quando este está quase a levar umas bofetadas já em casa, corta abruptamente para o Bruce Springsteen da actualidade (a actualidade aqui é 1982), numa arena a rebentar pelas costuras, onde termina com pompa e circunstância (e o Born to Run) a digressão do The River.

Springsteen – Deliver Me From Nowhere é um biopic muito certinho e by the book, em que o momento mais arriscado do realizador Scott Cooper é quando mete os Suicide na banda-sonora (e, mesmo assim, baixa o volume quando entram os gritos demoníacos de Frankie Teardrop). Contudo, não é o rol de lugares-comuns que ameaça de início. Quer dizer, é, mas não é só. É que Cooper dá espaço para a personagem de Springsteen crescer e respirar, não se limitando a ilustrar apenas os episódios da sua vida e obra.

Infelizmente, há pouca música em Springsteen – Deliver Me From Nowhere e isso é a parte mais desoladora do filme. E quando falo em pouca música é no sentido da criação e do trabalho, até porque as canções estão lá todas (incluindo a obrigatória Born in the USA, primeiro na demo original (que acaba de ser lançada no disco de outtakes do Nebraska) e depois já na versão final, gravada em estúdio com a E-Street Band). Só que surgem já feitas, terminadas e prontas a reproduzir, porque toda a gente sabe que os artistas são todos geniais, que acordam de manhã e escrevem um par de temas enquanto vão à casa de banho.

O outro trunfo de Springsteen – Deliver Me From Nowhere é ter Jeremy Allen White como protagonista, ele que é um Bruce Springsteen altamente convincente (e ter Stephen Graham no papel de pai, já agora). Para os fãs, o filme é um pequeno bombom, que recria com grande fidelidade os momentos de palco e estúdio. No entanto, esses meses fãs irão certamente irritar-se com a personagem feminina interpretada por Odessa Young, já que não representa ninguém em específico, mas uma série de envolvimentos românticos do Boss na vida real. Essa é também a personagem que haverá de desaparecer subitamente do argumento por motivos dramáticos, para depois voltar mais tarde num salto narrativo que merecia ter sido mais trabalhado em casa.

Springsteen – Deliver Me From Nowhere é um filme biográfico respeitável, que apesar de tudo não se perde no lambe-botismo habitual do género. E, ao contrário do que se possa pensar, não é tanto um filme sobre a música do Boss, mas mais uma história sobre saúde mental e sobre a relação entre um jovem adulto e o seu pai. E que tem a vantagem de ter uma óptima banda-sonora. Por isso, o McChicken não desilude, tanto para fãs como para menos conhecedores da vida e obra de Bruce Springsteen.

Título: Springsteen – Deliver Me From Nowhere
Realizador: Scott Cooper
Ano: 2025

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