Não deixa de ter uma pontinha de ironia que o realizador de O Herói de Hacksaw Bridge, biopic sobre o primeiro objector de consciência do exército norte-americano a receber a Medalha de Honra pelos seus actos heróicos em Okinawa, seja o mesmo que foi acusado de ter feito uma adaptação de A Paixão de Cristo demasiado violenta e gore. Mel Gibson, que tem andado meio desaparecido, voltou à cadeira de realizador, uma década após Apocalipto (que também tinha uma palavra a dizer no que diz respeito à violência), mesmo a tempo de conseguir amealhar uma mão cheia de nomeações ao Oscar. Incluindo uma de melhor filme. Sabe Deus como.
Desmond Doss (Andrew Garfield) foi então um adventista do sétimo dia que, quando viu os japoneses a atacarem Pearl Harbour, também não conseguiu ignorar o apelo e alistou-se para defender o seu país. No entanto, a sua convicção pacifista era forte e Doss decidiu que nunca pegaria numa arma. Isso valeu-lhe uma recruta dura, marcada pela ostracização dos colegas e os abusos dos superiores (que tentavam que ele desistisse, já que um soldado sem uma arma era uma coisa vergonhosa para um exército), mas depois, no campo de batalha em Okinawa, Doss tornou-se num verdadeiro herói sem capa quando salvou quase uma centena de colegas praticamente sozinho.
O Herói de Hacksaw Bridge começa por fazer a introdução a este homem, que ficou marcado na infância quando amalgou a cabeça do irmão com um tijolo. No entanto, parece que Mel Gibson nunca consegue fugir desta certa idealização do herói e do próprio heroísmo, num claro maniequeísmo dos conceitos do bem e do mal. Os japoneses então apenas surgem como uma massa colectiva sem rosto, numa clara encarnação do mal que se opõem aos bravos americanos, que faz lembrar a estrutura esteriotipada do western clássico, em que o índio era apenas um selvagem que se opunha ao progresso do homem branco.
Andrew Garfield, que em comparação com o seu recente Silêncio, até faz um excelente trabalho, é portanto mais a idealização do herói do que propriamente o herói desta história baseada em factos reais, povoada de estereótipos. Basta ver os colegas de Doss a partir do momento em que ele entra para a recruta, que são todos uma caricatura, incluindo o sargento Vince Vaughn, que parece ter andado a ver demasiadas vezes o Nascido Para Matar. Em O Herói de Hacksaw Bridge ninguém parece representar pessoas, mas sim representações de pessoas, como se fosse um filme à maneira de.
Depois, no último acto, O Herói de Hacksaw Bridge entra em modo de war movie e Mel Gibson tenta fazer por Okinawa o mesmo que O Resgate do Soldado Ryan fez pela Normandia. E, de certa forma, até o consegue, sendo a melhor coisa do filme, apesar de demasiados soldados a saltarem num trampolim cheios de piruetas encarpadas sempre que rebenta uma granada. Infelizmente, Mel Gibson entusiasma-se e deixa-se levar pela carnificina, entrando em modo Carolco, em que Desmond Doss faz tudo e mais alguma coisa sozinho, incluindo empurrar o sargento ferido num trenó improvisado enquanto ele dizima um batalhão de inimigos ou rechaçar duas granadas com uma raquetada à Djokovic e um pontapé de bicicleta à Ibrahimovic que parece o final com o Pelé no Fuga para a Vitória. E, mais uma vez, não deixa de ser irónico que um filme que pretende ser uma ode à anti-violência e contra a guerra, termine em glorioso slow-motion HD com os americanos a chachinarem japoneses à bruta, como se o fizessem em nome daquele herói improváel, de Deus e da América (que, no fundo, Deus e América são a mesma coisa). Não percebo o que faz este Cheeseburger nos nomeados ao Oscar. Título: Hacksaw Ridge
Realizador: Mel Gibson
Ano: 2016