O mais interessante de O Irlandês é que é um filme que, antes de o ser, já o era. Não estou a falar sequer da discussão sobre a Netflix e a guerra com os estúdios e as distribuidoras, nem tão pouco das críticas de Scorsese à Marvel, mas sim do facto de ser um filme sobre o final de um tempo e sobre envelhecer, feito por um realizador que… envelheceu e que, para isso, convocou uma série de actores que são o seu próprio património (De Niro, Pesci, Keitel…) – e que também estão velhos. E ainda lhe juntou um (olá Al Pacino, como estás?) – que, apesar de ser uma estreia, é como se fosse também um habitué do cinema de Scorsese há muito tempo.
O Irlandês é um épico de gangsters e, por isso, é impossível não lembrar de O Padrinho e sobretudo de Era Uma Vez na América (mas com actores rejuvenescidos digitalmente em contraste com a má maquilhagem para envelhecer desse). No entanto, mais importante do que a história de Frank Sheeran, o camionista que se tornou agiota e hitman da máfia italo-americana (que também é património cinematográfico de Martin Scorsese), além de amigo próximo de Jimmy Hoffa (para quem não sabe Hoffa foi um sindicalista de grande mediatismo nos anos 50 e 60, que acabaria por desaparecer sem deixar rasto), é a história sobre um tempo que termina, sobre os valores que se alteram com o passar do tempo (e, como sabemos, na máfia os valores são tudo) e sobre envelhecer.
Ao mesmo tempo, O Irlandês é um fresco sobre a América do final dos anos 50 até à contemporaneidade. É que Frank Sheeran é quase como um Forrest Gump versão mafioso, que acaba por estar presentes directa ou indirectamente em vários momentos marcantes da história norte-americana: a Baía dos Porcos, os Kennedy (John e Bobby), o Copacabana, Frank Sinatra… O filme faz um círculo perfeito e salta entre prolepses e analepses, recorrendo a um narrador sempre que necessário, para que a história se encerre com a necessária redenção final.
Antes já tinha havido Silêncio, mas não deixa de surpreender ver como Scorsese desacelerou em O Irlandês. Para quem está habituado ao seu ritmo cocainado, um filme de gangsters mais reflectivo acaba por causar alguma desconforto. Não por ser mau, mas mas se estranhar. Mas, tal como a Coca-cola, rapidamente se entranha. Basta ver como foi a primeira vez que conhecemos Martin Scorsese: num bar em Nova Iorque, ao som de Jumping Jack Flash. Em O Irlandês o movimento é semelhante, mas é feito num lar de terceira idade, ao som dos Five Satins. Ou seja, como alguém escreveu, enquanto que Os Cavaleiros do Asfalto é rock’n’roll, este é um crooner de salão.
Até Joe Pesci aparece em modo underacting, ele que nem no Sozinho em Casa se continha. Claro que Al Pacino faz o seu número de gritaria, mas fica bem, tanto por ser Jimmy Hoffa como por ser um filme de Scorsese. O Irlandês marca irremediavelmente o final de um ciclo na filmografia do americano. Vamos ver agora o que vem a seguir deste McBacon. O que é certo é que os seus gangsters nunca mais serão os mesmos.
Título: The Irishman
Realizador: Martin Scorsese
Ano: 2019