Escrevo-vos isto com o estômago às voltas e acho que tem pouco a ver com a tosta de frango que almocei e muito a ver com o documentário Becoming. A figura de Primeira Dama é um anacronismo estúpido. Um resquício monárquico que alia hoje em dia um conservadorismo parvo, que acha que o modelo de família de alguém é de alguma forma relevante para o cargo que ocupa, com uma necessidade de tornar candidatos políticos em algo vendável. E Michelle Obama é Michelle Obama por ter desempenhado o papel de Primeira Dama com mestria.
Mas será isso suficiente para a tornar interessante? Becoming é um louvor a Michelle Obama. Um elogio cheio de açúcar no qual a protagonista é pintada ora como heroína estóica que tudo ultrapassa, ora como mártir que chegou até a, vejam bem, ser criticada pelas roupas que vestia. A antiga Primeira Dama faz de Princesa Di enquanto faz cara de caso ao mesmo tempo que ouve histórias trágicas e depois distribui sabedoria em forma de frases feitas, do género tens de ser igual a ti mesma e quando tu descobrires o teu valor, os outros também o vão ver.
Diz banalidades em palco e o plano foca uma plateia com o sorriso embasbacado de quem acabou de ouvir uma verdade profunda que havia estado escondida. Enquanto seguimos o percurso de vida de Michelle Obama deparamo-nos com injustiças, machismo ou racismo, mas nunca nada é verdadeiramente questionado. Tudo nos é apresentado como um mundo que é o que é e onde o sucesso só depende dos indivíduos serem tão diligentes como Michelle Obama.
A ironia de esta ser uma figura cujo maior feito foi estar casada com um homem negro que chegou a presidente dos EUA parece passar completamente ao lado de toda a gente. Principalmente da protagonista. Quem nos é apresentado aqui não é nada mais nada menos do que uma estrela. Um produto de um novo star system cuja forma ofusca qualquer conteúdo. E o conteúdo aqui é muito mais sombrio do que parece.
Por debaixo de uma camada de verniz de Princesa Diana está uma mensagem de individualismo puro e duro: queres vencer na vida, faz por isso! O problema é que em nenhum momento se fala do que é “vencer na vida” nem no que é preciso mudar para que toda a gente tenha as mesmas oportunidade para fazer por isso. É por isso que a mensagem final é um desolador (ainda que com música inspiradora em pano de fundo) “desenrasca-te!”.
O autor confere a este filme um Happy Meal.
* texto por Diogo Augusto
Título: Becoming
Realizador: Nadia Hallgreen
Ano: 2020