É uma história escabrosa e, no mínimo, chocante. Em 1918, a filha e herdeira do fundador do Diário de Notícias, Maria Adelaide Coelho da Cunha, cansada dos casos do marido e da ingerência na sua fortuna, foge de casa com o motorista, vinte anos mais novo. Para defender a sua honra e virilidade, o marido mandou-a internar, acusando-a de estar louca, sobre o beneplácito de uma junta médica composta por Júlio de Matos, Egas Moniz e Sobral Cid. O diagnóstico: histeria, transtorno e febre do útero(!). Lembro que, anos depois, o primeiro daria nome ao hospital psiquiátrico da capital e o segundo sacaria um Nobel.
Maria Adelaide passou quase 5 anos a lutar pela sua liberdade, enquanto o marido geria a sua fortuna e vendia o Diário de Notícias contra a sua vontade. Ao fim desse tempo, descobriu-se que o hospício estava cheio de mulheres presas pelos maridos, como castigo por qualquer coisa que haviam feito. A lei seria mudada por causa desse caso. Ah, mas isso foi há 100 anos atrás, dizem-me vocês. Mas ainda esta semana, um aspirante a partido político apresentou uma moção que defendia a retirada dos ovários a mulheres que abortassem, como castigo do Estado. Por isso, o vosso argumento é inválido.
Por tudo isso, Ordem Moral terá que ser sempre visto como um filme activista, especialmente através dos óculos do movimento #metoo. Mesmo sem ser propriamente panfletário ou agit-prop, o novo filme de Mário Barroso, que traz para o grande ecrã o caso de Maria Adelaide (Maria de Medeiros), agita a bandeira da mensagem moral e não deixa de estar alinhado com os tempos que se vivem.
Apesar de ter trabalhado com Manoel de Oliveira e João César Monteiro, o cinema de Mário Barroso enquanto realizador (uma cadeira onde continua a se sentar de forma mais rara do que deveria) é outro. É um cinema mais perto dos clássicos norte-americanos, um cinema mais… comercial (e isto é um elogio). Por isso, com uma reconstituição de época impecável, Ordem Moral é filme escorreito, sem dramas de faca e alguidar, tearjerker ou outras intenções (voluntárias ou involuntárias).
É também um filme de actores, especialmente da sua protagonista. Maria de Medeiros, cada vez mais bissexta, saca um papelão enquanto Maria Adelaide, uma actriz muito particular a encarnar uma mulher muito à frente do seu tempo. Com ela, uma série de secundários notáveis, com Albano Jerónimo em bom plano, uma jovem Júlia Palha a reclamar por um papel a sério em breve ou um também muito raro Rui Morisson.
No final, Ordem Moral também não se furta a alguns dos pecados do costume do cinema nacional. Prova do crime: a tentação de encher Maria de Medeiros com próteses fajutas, para a envelhecer, na prolepse que fecha o filme (se bem que nada bate a caracterização horrível da Amália Rodrigues velha, no biopic Amália – O Filme). I rest my case. Veredicto do júri: McBacon. O juiz decidiu, está decidido.
Título: Ordem Moral
Realizador: Mário Barroso
Ano: 2020