August Wilson foi um dos grandes dramaturgos da psique norte-americana e, especialmente, da experiência afro-americana, para ser colocado lado a lado com James Baldwin. Na sua obra, destaque para o decálogo Pittsburgh Cycle, dez peças sobre a América negra, cada uma ambientada numa década diferente, que Denzel Washington decidiu adaptar ao ecrã. Assim, depois de Vedações, chega à Netflix o segundo desses tomos: Ma Rainey – A Mãe do Blues.
Ma Rainey, considerada por muitos como a mãe do blues, foi uma das primeiras artistas do género a gravar, tendo feito a ponte entre o vaudeville e o blues. Era uma espécie de Howling Wolf no feminino, com um vozeirão gutural, e rezam as crónicas que tinha um mau feitio tão grande quanto o seu talento. August Wilson pegou na figura real de Ma Rainey e dramatizou a gravação de um dos seus temas mais populares, Ma Rainey’s Black Bottom, para explorar vários temas da América negra dos anos 20 e da experiência afro-americana da altura.
Ou seja, através d uma das figuras-chave da cultura popular fundadora norte-americana, Ma Rainey – A Mãe do Blues discorre e reflecte sobre uma série de de temáticas fracturastes, em que a questão racial não pode ser desassociada: a questão de classe, de género e até sexual. Além disso, outras dicotomias são exploradas, como a religião e espiritualidade (que também estão relacionadas com a comunidade afro-americana) ou a arte e a música, com o blues como banda-sonora de fundo, claro.
Ma Rainey – A Mãe do Blues passa-se então num estúdio onde Ma Rainey (Viola Davis), a sua entourage (um sobrinho e a namorada) e a respectiva banda chegam para gravar um disco. Tal como Vedações – e a maioria dos filmes que são teatro filmado (Roman Polanski tem-no feito muito nos últimos anos) – é um filme de vários actores num só espaço, se bem que aqui o realizador George C. Wolfe toma a liberdade de sair do edifício um par de vezes para breves preâmbulos: um acidente de carro à chegada de Ma Rainey, uma saída extemporânea depois de uma discussão com o manager, uma breve ida à mercearia para comprar Coca-cola em que os brancos os olham de lado… Todos esses apartes são completamente dispensáveis e só servem para libertar o vapor e deixar desanuviar a tensão acumulada. Alguém não fez o trabalho de casa e não viu Doze Homens em Fúria.
As melhores partes de Ma Rainey – A Mãe do Blues são mesmo quando os ânimos se exaltam e os diálogos são disparados numa sucessão torrencial de palavras, que são usadas como armas. George C. Wolfe não inventa e limita-se a ilustrar os diálogos porque sabe que a força do filme está no texto. No texto e nos actores, claro. Viola Davis tem a posição central ou não desse ela título ao filme, numa daquelas personagens compostas que a Academia adora premiar. Carregada de maquilhagem, uma pose de diva e um feitiozinho daqueles, Davis tem tanto de presença intimidante de monstro sagrado quanto de grotesco à Bette Davis em Que Teria Acontecido a Baby Jane? No entanto, fica sempre a sensação que lhe falta sempre um pouco de porte físico para lá da maquilhagem, dos olhos cavos ou dos dentes de ouro. Sentimos falta de um corpo que encha e transborde do ecrã, como quando vemos Gérard Depardieu na maioria dos seus filmes recentes.
Contudo, é Chadwick Boseman o actor principal do filme. Seria sempre sobre ele que estaria a nossa atenção, ou não fosse este o seu último trabalho, que chega a nós já em período póstumo. Mas é ele também a peça fulcral de Ma Rainey – A Mãe do Blues, o trompetista da banda que não se conforma com papel que a sociedade norte-americana lhe permite. Com o seu talento, ambição e língua afiada, Boseman parece destinado a outros voos, mas as limitações raciais e a segregação social não lhe vão permitir cumprir esse destino. E, por isso, a tragédia é anunciada. O texto é forte, oferece a Chadwick Boseman um dos melhores monólogos das obras de August Wilson sobre a violação da mãe às mãos de um grupo de brancos e adapta de forma impecável a peça ao cinema. Mas não é um McBacon que reinvente o teatro filmado, os seus atributos são outros.
Título: Ma Rainey’s Black Bottom
Realizador: George C. Wolfe
Ano: 2020