No recente documentário da HBO sobre o infame Woodstock de 1999, Peace, Love and Cage, alguém diz às tantas que o Woodstock original, em 1969, só tem o lugar que tem na cultura popular ocidental porque houve uma romantização extrema do evento. É que, na realidade, aquilo foi um desastre organizacional e, provavelmente, só não degenerou em coisas piores porque a droga da altura era bem diferente dos ácidos e do speed de 99. Afinal de contas, todos nós vimos Destino: Woodstock que, apesar de ser igualmente romantizado, dá uma ideia do nível de desorganização do evento.
Ou seja, se por um lado o Woodstock, de 69, teve um óptimo marketing (incluindo o próprio documentário-concerto e a banda-sonora tripla), que o ajudou a manter-se como um dos eventos fundadores da cultura popular contemporânea, o Harlem Cultural Festival, um festival que decorreu durante 6 meses nesse bairro norte-americano, é o seu completo oposto. Um evento que, apesar de igual importância fundadora para a celebração cultural negra e, consequentemente, para a emancipação dos direitos dessa comunidade, caiu no esquecimento. Às tantas, neste novo documentário que resgata da memória o Harlem Cultural Festival, Summer of Soul, alguém há de dizer, ao ver as imagens, que durante algum tempo começou a questionar-se se o festival tinha mesmo acontecido ou se tinha apenas sonhado com ele, tal é a invisibilidade a que foi votado.
Summer of Soul é então o documentário em que Questlove, o baterista dessa instituição que são os The Roots (e ele próprio é também uma instituição, enquanto músico, mas também produtor e divulgador da música negra), recupera as imagens do Harlem Cultural Festival e monta o seu próprio Woodstock, versão soul, blues, gospel, r&b, jazz e world music. Depois, cruza essas imagens com entrevistas aos próprios (Stevie Wonder ou Gladys Knight são alguns dos que ainda estão vivos e aparecem no documentário, versão cabeças falantes), em interlúdios que servem para contextualizar vários temas fundamentais naquilo que é a cultura negra (com um segmento muito interessante dedicado ao gospel), a luta pelos direitos dessa comunidade (e aqui o documentário rima com a actualidade e com o movimento Black Lives Matter) ou mesmo a evolução do Harlem ao longo dos anos, até chocar com a gentrificação actual.
Ou seja, já bastaria a https://www.imdb.com/title/tt11422728/Summer of Soul mostrar-nos as actuações, ao vivo e a cores, de gente como Stevie Wonder, Nina Simone ou Sky and the Family Stone (vénias com saída à rectaguarda a todas elas, que só pecam por curtas) para que o recomendássemos sem reservas. No entanto, ainda temos os próprios artistas (e outros intervenientes directos) a relembrarem como era tocar nessa altura, a fazer o contexto sócio-político dos anos 60 em matéria de direitos humanos, a explicar o que tudo isso significou e a utilizar found footage para que nenhum desses tópicos deixe coisas por dizer. Ah, e há imagens breves, mas sempre pertinentes, da actuação do grande Sonny Sharrock, músico que merece ser mais recordado do que é.
O Harlem Cultural Festival foi fundamental para estabelecer uma cultura negra, orgulhosa e celebrada, um ano depois de James Brown ter gritado Say it loud: I’m black and I’m proud, e basta ver a lista de artistas que desfilam pelo documentário para o perceber: os já citados Stevie Wonder, Sky and Family Stone e Nina Simone, mas também Gladys Knight, BB King ou os The 5th Dimension, artistas daquilo que se convencionaria chamar de world music, incluindo o sul-africano Hugh Masekela, jazz de todos os quadrantes incluindo o mais avant garde (alguém mencionou Sonny Sharrock?) e nomes fundamentais do activismo negro, como o reverendo Jesse Jackson. Summer of Soul surge com um atraso de 60 anos, mas já diz a sabedoria popular que mais vale tarde do que nunca. Obviamente que isso é discutível, mas será que o podemos discutir enquanto comemos um McRoyal Deluxe e a banda-sonora do filme toca por trás?
Título: Summer of Soul (Or When the Revolution Could Not Be Televised)
Realizador: Questlove
Ano: 2021