Se as madrastas têm má fama, em muito a culpa é de A Gata Borralheira. O clássico da Disney contribuiu em muito para cristalizar o arquétipo da madrasta malvada, que só quer o sofrimento cruel dos seus enteados. Basta ir procurar no dicionário Priberam a definição da palavra madrasta para encontrar o equivalente depreciativo de mulher má.
A Gata Borralheira esforça-se, na sua abertura, para nos mostrar logo como a madrasta (voz de Eleanor Audley) da Cinderella (voz de Ilene Woods) é toda ela veneno e fel. Num prólogo narrado com voz solene, ficamos a conhecer a história daquela jovem que, após a morte do pai, passou a viver com a madrasta e as duas filhas desta (igualmente más e tão feias quanto malignas), numa existência de abuso físico e psicológico. Como diz o narrador, Cinderella passou a ser uma criada fechada na sua própria casa.
E, no entanto, Cinderella não guarda nenhum rancor à madrasta e às meias-irmãs. Isso porque é um poço de virtudes, tão perfeita que, apesar de ser escravizada diariamente em tarefas domésticas, mantém sempre um penteado e uma maquilhagem imaculada. Os animais adoram-na, há uns ratos que são os percursores dos minions (trapalhões de espírito niilista, mas sem abusarem da linguagem irritante) e os passarinhos acordam-na todas as manhãs, costuram-lhe um vestido quando tem que ir ao baile e é tudo cor-de-rosa, unicórnios e arco-íris. Cinderella é tão perfeita que até mete raiva. E, como se isso não bastasse, tem a voz de um anjo sempre que abre as goelas.
O que se segue é do conhecimento geral, já que faz parte da memória colectiva de todos nós: o rei local organiza um baile para tentar encontrar uma esposa para o filho que lhe dê um netinho, a Cinderella vê a madrasta sabotar-lhe os planos para ir, uma fada madrinha aparece e resolve a situação transformando uma abóbora em carruagem, yada yada yada, perde um sapato, yada yada yada, vivem felizes para sempre.
Reza a história que a Disney transformou-se na Disney após este filme. Na altura, a casa do rato Mickey atravessa uma crise financeira, potencial por uma série de fiascos de bilheteira e apostou tudo neste clássico, que acabaria por consolidar uma série de características que se tornariam imagens de marca da produtora: a antropormofização dos animais, a banda-sonora orelhuda (que seria a primeira a ter edição própria em disco e tudo) e um ambiente de conto de fábulas, com uma animação impecável, cenários reminescentes do expressionismo russo e a tradição do music hall a embelezar cada coreografia. Walt Disney dizia mesmo que a cena em que a fada madrinha cria o vestido da Cinderella era o seu momento de animação favorito de todos os seus filmes. Por isso, qualquer versão em imagem real de A Gata Borralheira estaria condenada ao insucesso à partida. Nada se compara a este McRoyal Deluxe.
Título: Cinderella
Realizador: Clyde Geronimi, Wilfred Jackson & Hamilton Luske
Ano: 1950