Quem diria que os filmes de carros iam-se tornar num sub-género relevante em dois mil e vinte e picos? É o efeito-Velozes e Furiosos, claro, mas foi Rush – Duelo de Rivais que mostrou que havia público para histórias reais relacionadas com desportos automóvel. Desde então já tivemos filmes sobre James Hunt e Niki Lauda, sobre Ferruccio Lamborghini ou sobre a rivalidade entre a Lancia e a Audi. Já para não falar de Le Mans ’66: O Duelo ou Gran Turismo. Com tudo isso, está Steve McQueen a lamentar-se lá onde quer que ele esteja, depois de ter passado uma vida a ter de financiar do próprio bolso filmes de carros que queria fazer.
Agora chega a vez de Enzo Ferrari, com o filme homónimo de Michael Mann, se bem que este não é um biopic convencional sobre a vida e obra do criador da Cavallino Rampante. Ferrari foca-se apenas num momento muito particular da sua vida: o verão de 1957, quando a empresa atravessava uma fase delicada, com as corridas a consumirem o dinheiro todo que a Ferrari fazia a vender os seus automóveis de luxo (eu vendo carros para poder participar nas corridas, declarava Enzo Ferrari às tantas, para que não restassem dúvidas sobre qual era a sua verdadeira paixão) e o seu casamento com Laura Ferrari soçobrava, após era descobrir que o marido tinha uma vida dupla e um filho de 10 anos de outra mulher.
Mais do que um filme de carros, Ferrari é um drama complexo, sobre uma figura bigger than life, em todos os seus paradoxos e contradições. Enzo Ferrari (que Adam Driver interpreta com dedicação e sotaque desnecessário, repetindo o erro de Casa de Gucci) é assim um tipo obcecado com os carros (e também com a velocidade), mas sobretudo com o legado. Por isso, é um tipo que chega quase a ser cruel, na forma como trata com distanciamento os seus pilotos: carne para canhão, que devem entrar nos seus carros sem temer a morte, já que a glória e o espírito de missão devem-se sobrepor ao resto.
Michael Mann monta Ferrari sem julgamentos, mas também sem paninhos quentes. Por isso, os problemas matrimoniais de Enzo Ferrari, assim como o trauma da perda precoce do seu primeiro filho, são tanto reflexos da sua vida como consequências. Por isso, a esposa Laura (óptima Penélope Cruz, se bem que parece deslumbrar-se com tamanho sofrimento da sua personagem) é o contraponto que dá profundidade familiar aquele homem e dimensão humana.
E os carros? O grande clímax de Ferrari é a Mille Miglia, a infame corrida de longa distância que, em treze edições, matou mais de meia centena de pessoas. Essa edição de 57 alterou para sempre a história da marca e, por isso, é a parte mais esperada de todo o filme. Até porque Mann é um realizador que, especialmente desde que começou a filmar em digital, se foi tornando cada vez mais estilizado e liso (como é que se traduz slick?) e, por isso, mais propenso à velocidade e à vertigem. Por isso, ainda que recuse o CGI e todos os carros e os barulhos reais de motores lembrem o Le Mans, numa espécie de gesto artesanal, as cenas da corrida saibam a pouco. E, claro, há a parte dos acidentes que são… como dizer… cheesy? Mas a isso já Adam Driver respondeu da melhor forma: fuck you, I don’t know. Nah, já vi melhores filmes de carros (e melhores filmes de Michael Mann) do que este Cheeseburger.
Título: Ferrari
Realizador: Michael Mann
Ano: 2023