Numa sexta-feira 13 de 1972, provando que as superstições são mesmo para ter em conta, o avião que transportava uma equipa de râguebi uruguaia mais os seus amigos e alguns familiares para um jogo no Chile, despenhou-se nos Andes. Dos 45 tripulantes, 29 sobreviveram ao impacto, mas só 16 iriam sobreviver aos 72 dias que permaneceram no meio de nenhures antes de serem resgatados.
Bem diz a sabedoria popular que a realidade é mais estranha que a ficção e eis mais um caso para o provar. Se não soubessemos, criticaríamos com desdém a história de Estamos Vivos pela sua pouca credibilidade. Como é que 29 pessoas poderiam sobreviver no meio da neve e de temperaturas negativas sem comida, aquecimento ou ajuda médica? Estamos Vivos dá-nos a resposta: com muita preserverança, força de vontade, entreajuda e… canibalismo.
Sim, em Estamos Vivos, os sobreviventes da queda do avião tiveram que recorrer ao canibalismo quando, em desespero de causa, começaram a desfalecer. E essa é uma das cenas mais fortes do filme, em que aquela gente discute os princípios morais e de ética de uma atitude como essa. Até que alguém remata uma frase-chave: as pessoas hão-de entender. O outro grande momento de Estamos Vivos é no final, quando os helicópteros chegam para resgatar os sobreviventes e parece que conseguimos ver no olhar daqueles actores o mesmo brilho que os olhos dos uruguaios devem ter tido naquele fatídico dia de 1972.
O Milagre dos Andes, como ficou conhecida esta aventura junto da comunicação social, é uma história fortíssima e, como tal, era praticamente impossível não fazer um bom filme disto. Vemos Estamos Vivos e sentimo-nos oprimidos e desanimados, ao passarmos duas horas isolados no meio do nada com aquele herói colectivo, mas o filme não é só isso. Frank Marshall é um tipo que sabe do poder das imagens, ou não tivesse ele aprendido com um dos melhores (olá Steven Spielberg), mas abusa das panorâmicas e dos planos postais de férias. Escreve ainda tão bons diálogos quanto George Lucas. Mas dispensável mesmo era o interlúdio, com John Malkovich a fazer de narrador, desaparecendo depois quando começa a trama do filme.
Estamos Vivos é um dos survivors mais agrestes dos filmes do género. Vale um McChicken e só não se percebe como é que um então muito jovem Ethan Hawke passa 72 dias no meio da neve e só a pêra é que lhe cresce.
Título: Alive
Realizador: Frank Marshall
Ano: 1993
O Milagre dos Andes regressa ao grande ecrã com uma nova produção de luxo, cortesia da Netflix, depois do filme dos anos noventa (olá Estamos Vivos), de um telefilme dos anos 70 e de vários documentários. Para quem nunca ouviu falar da história (e ignorando o texto acima), esta é a história real de um avião que se despenhou nos Andes com uma equipa inteira de rugby lá dentro e os sobreviventes conseguiram resistir 72 dias praticamente sem comida ou aquecimento, tendo que recorrer, inclusive, ao canibalismo.
Portanto, o Milagre dos Andes – como ficou conhecido o caos junto da praça pública – é a história de sobrevivência por excelência, que leva tudo ao extremo dos extremos. E nada a bate porque esta… é real! Assim, não é de admirar que A Sociedade da Neve coloque as fichas todas nessa luta pela sobrevivência (e que é, simultaneamente, uma ode à camaradagem e à entreajuda). Depois de um curto prólogo, em que somos introduzidos às personagens que vão formar aquele herói colectivo e onde assistimos a um ridículo jogo de rugby (com uma jogada altamente inverosímil, mas que servirá para fazer uma rima muda já no final do filme com uma cena fulcral), lá vamos nós de avião com aquela malta.
Muito bem feito, mas sem escapar ao voyeurismo gratuito (com vários detalhes dos ossos partidos e corpos esmagados), assistimos à queda do avião no meio de nenhures, algures nos Andes, deixando os 29 sobreviventes ao deus-dará, sem grandes ferramentas (ou provisões) para resistirem. No entanto, contra todas as probabilidades, 16 deles sobreviveram 72 dias, até que dois helicópteros os resgataram. Alguns ainda estão vivos actualmente e há três deles que têm cameos em A Sociedade da Neve.
J. A. Bayona monta então esta luta pela sobrevivência, onde o sofrimento é grande, mas a fé tem papel fundamental, inclusive na discussão ética pela parte do canibalismo. Ao contrário do anterior Estamos Vivos, em que o realizador Frank Marshall se deixava maravilhar pelas paisagens da serra coberta de neve, A Sociedade da Neve consegue captar bem a agrura da situação, com um desenho de som bem esgalhado que, com as condições certas (ou seja, com um sistema de som como deve de ser), nos atira para o meio daquela luta contra a natureza.
No entanto, a grande novidade de A Sociedade da Neve tem a ver com a utilização do narrador. Bayona dá a palavra a um dos jovens sobreviventes, Numa (Enzo Vogrincic), que é também um dos que mais sofre com a decisão de ter que comer os amigos, mas que não é por isso que é o escolhido. É que [spoilers] Numa é um dos que não resiste até ao final do filme, o que funciona também para explorar a temática da lembrança e para honrar com grande respeito (ou, pelo menos, com a intenção de) os que não sobreviveram ao desastre. Não quer dizer que A Sociedade da Neve o faça exemplarmente, mas não deixa de ser um bom survivor movie e um sólido McChicken.
Título: La Sociedad de la Nieve
Realizador: J. A. Bayona
Ano: 2023